“SONNE” – Losing my religion [46 MICSP]
Como seria se um grupo de garotas gravasse um vídeo cantando e dançando uma música em inglês, usando trajes típicos muçulmanos e fazendo troça da situação? SONNE tenta fornecer uma resposta, imaginando quais seriam as consequências em um contexto marcado por, de um lado, vicissitudes das mídias sociais, e, de outro, um grito de empoderamento.
Enquanto se divertem em casa, Bella, Nati e Yesmin decidem gravar um vídeo cantando e dançando “Losing my religion”, fazendo zombaria com os trajes típicos muçulmanos de Yesmin. O que era para ser uma piada entre as três ganha maiores proporções com a publicação do vídeo, que as torna conhecidas em Viena e dá a elas a oportunidade de passar a mensagem de que uma mulher de burca pode dançar.
Existem dois aspectos em que o roteiro de Kurdwin Ayub, também diretor do longa, se destaca. O primeiro deles é a reflexão proposta: uma mulher de burca pode dançar (leia-se, com movimentos de dança ocidental)? A resposta pode parecer óbvia dada a euforia do trio de meninas com a fama e mesmo a sua empolgação em declarar, expressamente, uma resposta afirmativa. O objetivo inicial provavelmente não era inspirar outras garotas (ao contrário do que elas afirmam), mas o efeito pode, de fato, ocorrer.
Entretanto, essa resposta afirmativa é colocada em xeque em dois momentos: na reação dos pais e na reação dos rapazes que elas conhecem em uma cerimônia. Enquanto aqueles são divididos, estes são enfáticos ao censurar o vídeo, com um fundamento que não é unidimensional. Eles poderiam dizer que o vídeo é censurável porque o comportamento das meninas é censurável por serem mulheres (alegação machista, mas que não seria surpreendente), mas seu argumento é que o vídeo representa um desrespeito ao traje típico da sua religião. A justificativa deixa de ser puramente ideológica (ou política) e passa a ser religiosa, tornando mais complexa a resposta à pergunta inicial. A reflexão proposta é inteligente e construtiva.
O segundo aspecto em que o script brilha tem teor narrativo e se refere à dinâmica familiar. Parte do crédito vai para Omar (Omar Ayub), que se afasta do estereótipo do pai de família muçulmano. Ainda que inserido no contexto da religião, ele é tão devoto à própria filha que a sua própria conduta é deveras progressista (como ao usar o rímel de Yesmin). Como o seu oposto está Awini (Awini Barwari), cuja mentalidade é muito mais conservadora e severa com Yesmin. Completa o núcleo familiar Kerim (Kerim Dogan), fonte de atritos entre Awini e Omar.
O que chama a atenção na família é o modo como as relações de gênero são divididas: enquanto Omar é carinhoso e relativiza todas as condutas de Yesmin (inclusive a mais grave, do final), Awini gostaria que ele fosse mais rígido com ela, ao passo que, em relação a Kerim, Awini é protetiva e reclama que Omar é distante. As brigas do casal são reiteradas porque, do ponto de vista da mãe, o pai só tem interesse da filha, enquanto que, na ótica do pai, a mãe é severa demais com a filha e deixa de sê-lo com o filho. A divisão de gênero não é gratuita: Omar projeta em Yesmin uma liberdade e uma juventude que não pertencem a ele (por isso conversa com as amigas, comenta no vídeo, dança etc.), já Awini projeta em Kerim seu próprio trauma concernente ao desejo natural de escapar e ser livre (o que fica claro quando ela chora ao narrar sua fuga pela sobrevivência).
“Sonne” transita entre o que viraliza nas redes sociais e o empoderamento individual. Há cenas em que a tela simula uma filmagem vertical de acontecimentos (como se gravado em celular para publicação em rede social) ou de conversas virtuais, o que faz parte da cultura das mídias contemporâneas – representada também, por exemplo, pelos filtros (orelhas de coelho, fogo saindo pela boca…) e pelo comportamento debochado das adolescentes, dispostas a rir a qualquer preço. A noção de empoderamento é corporificada por Yesmin no trabalho apenas razoável de Melina Benli, que sente confiança em proclamar a autonomia para as próprias decisões, mas é flagrada com uma fala racista. Complementando este trânsito está a excelente escolha de música, como se “Losing my religion” quisesse dizer, na verdade, “perdendo as minhas origens” – isto é, como se Yesmin estivesse em um movimento de afastamento da sua cultura muçulmana. Com um final melhor delineado, o filme teria confirmado (ou rejeitado) tal hipótese.
* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.