“SOFTIE” – A emancipação de uma infância roubada
Não é incomum nos depararmos com figuras que subvertem as suas supostas funções ou expectativas sociais. Pela herança de trajetórias avessas ou influências nem sempre positivas, muitas crianças tendem a amadurecer de maneira bastante precoce, distantes da aparência pueril carregada consigo. Ciente dessa lógica de subversão do superficial, é nesse universo que opera o cuidadoso SOFTIE, ancorado no interessante desenvolvimento de um deslocamento infantil.
Forçado a acompanhar as incontáveis reviravoltas na vida amorosa de sua mãe solteira, Johnny leva uma rotina difícil em um conjunto habitacional francês, auxiliando o cuidado de sua irmã mais nova. Ele fuma com frequência e não consegue se conectar os colegas da escola e de seu bairro. Tudo muda quando um novo professor, o Sr. Adamski, passa a enxergar um grande potencial no futuro do garoto.
Dirigido pelo francês Samuel Theis, chama a atenção como o longa complexifica o desenvolvimento do jovem menino. Ainda que Johnny apresente traços de uma reclusão já muito reproduzida por códigos cinematográficos, e tenha os cigarros como um símbolo tradicional de contradição etária, merece destaque a forma como a sua perspectiva se desenrola em câmera. Associada inteiramente a sua perspectiva, ela permite um distanciamento com relação aos demais personagens que autoriza a sua suspensão, nos permitindo questionar a verdadeira tônica por detrás de suas intenções.
O predomínio de enquadramentos em câmera na mão amplifica essa incerteza, ainda que a maioria dos planos sequência apresente um ritmo interno marcado pela lentidão e movimentos calmos. Não demora a se perceber que estamos em um universo distante de maniqueísmos, onde todas as figuras trazem a sua própria densidade e passam a influenciar umas as outras de maneiras diferentes ao longo da duração.
Nesse sentido, há muita beleza na forma como o professor desenvolve a sua sensibilidade para com o garoto, e especialmente na maneira como a decupagem acompanha essa aproximação. Se em um primeiro momento Johnny desaparece em meio às carteiras e rostos na sala de aula, esse avanço permite um predomínio de planos mais fechados, eliminando uma série de obstruções visuais que antes separavam aluno e professor (Antoine Reinartz)
Em uma esfera mais íntima, isso nos permite compreender melhor a protagonista diante dos nossos olhos, desmistificando o rosto sério do talentoso ator mirim, Aliocha Reinert. Ele consegue transitar de forma impressionante entre a sua maturidade forçada e um olhar esparonçoso que começa a florescer, tendo as suas expressões mais delicadas valorizadas por uma câmera que decide se aproximar mais e mais. Exemplo disso se faz na cena em que Johnny e o Sr. Adamski visitam um museu à noite. É um momento em que o filme se rende a uma experimentação de olhares e percepções, comunicando a importância desse passeio para o garoto sem usar uma palavras sequer. Como um todo, pequenas marcas começam a ser reveladas em sua pele, toques afetuosos entre ele e a irmã mais nova, explorando essas e outras particularidades que reforçam uma concretude dificultada em um núcleo de relações naturalmente nuclear.
Esse contraponto, inclusive, questiona indiretamente a possibilidade de uma evolução desse modo de vida, sendo evidente o contraste que o roteiro cria entre a fragilidade dos relacionamentos assumidos Izïa Higelin, intérprete de sua mãe, e as relações que Johnny tenta estabelecer. Sem remover a complexidade que permeia o conjunto em si, é extremamente imediata a conexão com o rapaz, dono de uma inocência pulsante escondida por detrás de camadas e camadas de uma desvirtuação de funções. Isso é acrescido, ainda, pelo discurso em relação à performance de uma masculinidade esperada do protagonista, mas que não se faz na prática e se torna uma complicação a mais, especialmente no diálogo duro que mantém com a sua geradora, em sua vida.
Desse modo, a delicadeza de “Softie” autoriza uma interessante construção de intimidade através da câmera, construindo, através da lente, a desconstrução de uma personagem infantil que injustamente perdeu o direito de ser criança. A jornada de emancipação desse inocente se revela dona de um equilíbrio bastante inteligente, que contrapõe a leveza de algumas relações com o peso de determinadas realidades. Tem-se assim um ótimo conto sobre a fuga da infância e a necessidade de se lutar pelo direito de seguir a própria natureza.