“SOB O DOMÍNIO DO MAL” (2004) – Conspiracionismo e (in)verossimilhança
Imagine um grupo de pessoas acorrentadas dentro de uma caverna, onde sempre estiveram e de onde não conseguem sair. Tudo o que enxergam são as sombras do mundo exterior, o que acabam acreditando ser reais. Certo dia, uma dessas pessoas consegue sair e descobre que o que estavam enxergando são sombras, porque o que é real é o que está fora da caverna. Quando ele volta para conversar com os demais prisioneiros, eles não aceitam o que ele fala e se negam a sair e, quem sabe, descobrir que é verdade. SOB O DOMÍNIO DO MAL, de 2004, é uma roupagem contemporânea bem estadunidense da alegoria da caverna criada por Platão e acima esboçada.
No longa, Ben Marco é um capitão cuja tropa é sequestrada pelo inimigo durante a Guerra do Golfo. Anos depois, suas lembranças são turvas, recordando-se apenas que o herói do grupo foi Raymond Shaw, soldado que conseguiu salvar quase toda a tropa. Quando Al Melvin, outro soldado, vai atrás de Ben e revela ter pesadelos segundo os quais as lembranças não condizem com a realidade, o capitão e agora major duvida também das próprias memórias.
Com o nome original de “The manchurian candidate”, trata-se de um remake do homônimo longa de 1962 – que se baseou no romance (também homônimo) de Richard Condon -, cujo script foi desenvolvido por George Axelrod. Daniel Pyne e Dean Georgaris conseguem transmitir o espírito quase paranoico da cultura estadunidense, simpática ao conspiracionismo. Em determinado momento, o protagonista conversa com seu amigo Delp (Bruno Ganz), que aumenta vertiginosamente o ceticismo de Ben: e se tudo for na verdade um sonho e ele ainda estiver no Kuwait?
De fato, a linha entre o onírico e o real pode ser tênue em alguns momentos (leia-se, há sonhos que realmente parecem bem reais quando a pessoa acorda). A ideia do conspiracionismo, nesse caso, é confundir memórias com realidade. Denzel Washington acerta ao não se utilizar de overacting ao interpretar Ben. Pelo contrário, apesar de todos o acusarem de louco – e apesar de alguns delírios que só ele tem -, sua certeza da sanidade é o que permite alguma credibilidade da sua teoria. Não por outra razão, o próprio Raymond Shaw, vivido por Liev Schreiber, também sugere ter dúvidas (e a atuação de Schreiber é extremamente minimalista).
No elenco estão ainda Jeffrey Wright, Vera Farmiga, Jon Voight e Meryl Streep. Wright é meramente a catapulta para toda a trama, sem grande destaque. Farmiga está em um subplot envolvendo Voight e Schreiber, que, todavia, é muito mal desenvolvido, desperdiçando um elenco de qualidade. O backstory entre Raymond (Schreiber) e Joceline (Farmiga) é praticamente inútil, enquanto o Senador Jordan (Voight) poderia ter um arco dramático melhor desenvolvido no que se refere à interação com a Senadora Eleanor Shaw. Esta é interpretada por Streep, que fornece à personagem sua presença forte em um papel antipático, uma mulher persuasiva e manipuladora que quer gerir a carreira política do filho. O trato do roteiro, contudo, é unidimensional no caso dela (poderia explorar o trauma da viuvez, por exemplo) e envereda por caminhos questionáveis (como a relação edipiana com Raymond).
A direção é de Jonathan Demme, provavelmente mais conhecido por “O silêncio dos inocentes” e “Filadélfia”. A familiaridade do cineasta com o suspense faz com que a manipulação da tensão do espectador seja pouco perceptível, como na utilização de câmera subjetiva (na sequência em que Raymond atende o telefone) e closes (a cena de conversa entre Melvin e Ben). A montagem também amplia essa sensação, como no primeiro ato, em que a saída de uma cena de batalha para uma de palestra causa alguma surpresa, ou como na sequência em montagem paralela em que Ben entra na casa de Melvin e Raymond encontra Atticus (Simon McBurney) pela primeira vez.
Os cortes são inteligentes ao conectar personagens e lugares, como ao colocar Ben e Raymond assistindo ao mesmo noticiário, cada um em suas casas. Como forma de contrapor os dois, ainda, o design de produção tem muito esmero colocando o primeiro em ambientes fechados e de cores escuras e o segundo no oposto. A casa de Ben é bagunçada e apertada, além de visualmente poluída; a de Raymond, em tons de pêssego e com espaços amplos.
“Sob o domínio do mal” não é o mais verossímil dos filmes (como Ben pode ser tão ingênuo, ao menos em sua conduta, em relação a Rosie!?). Porém, ele não apenas retrata uma cultura em que o conspiracionismo é comum, como também permite uma reflexão sobre a própria verossimilhança. Até que ponto uma narrativa pode ser considerada crível? Quem é capaz de dizer?
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.