“SIMONAL” – Trajetórias coletivas e individuais
Na abertura de SIMONAL, lê-se uma cartela que indica ser o filme uma história da música popular brasileira durante a ditadura militar. Quando a projeção se desenrola, a narrativa não se restringe às indicações iniciais e demonstra ser possível combinar o contexto musical da década de 1970 no Brasil à trajetória dramática de um personagem complexo da época. A difícil tarefa de integrar o panorama histórico mais amplo à conturbada vida do cantor Wilson Simonal de Castro é atingida com sucesso.
Baseando-se em eventos reais que se passaram no cenário artístico e político brasileiro das décadas de 1960 e 1970, o filme acompanha a escalada para o estrelato de Wilson Simonal. Graças à sua voz marcante e ao seu charme irresistível, ele deixa de ser funcionário da Rede Tupi e, gradualmente, se torna um astro da MPB. Entretanto, com o descontrole de suas finanças e o avanço da repressão da ditadura militar, Simonal mergulha em uma espiral de atitudes problemáticas que causam a ruína da sua carreira.
Partindo da frase da abertura, o roteiro não cria uma jornada convencional para o protagonista, pois não inicia com a fórmula clássica de origem e superação das adversidades iniciais. A narrativa é econômica, levando Simonal rapidamente para o meio musical e para o sucesso de público já nos primeiros minutos e mostrando como o primeiro ato não se fecha apenas no personagem. A intenção dos primeiros minutos é passear pelo cenário artístico das duas décadas, apresentando os programas de rádio a partir do produtor Carlos Imperial; as apresentações no boêmio clube noturno Beco das Garrafas; os grandes shows em pontos marcantes, como o Maracanã; as apresentações musicais na TV; e a ascensão de Simonal como garoto propaganda de marcas importantes e empresário no ramo fonográfico.
Ainda que o arco do músico não ocupe totalmente o eixo dramático a princípio, a atuação de Fabricio Boliveira se destaca imediatamente. O ator explora a energia dessa personalidade que divertia e arrastava a multidão com suas canções dançantes, um timbre de voz dinâmico e performances de gestos teatrais e expansivos no palco. Além disso, o protagonista é bem construído no que se refere a características que podem ser virtudes, mas também se transformar em defeitos: a autoconfiança, o desafio ao status quo e a valorização de sua própria imagem se convertem em arrogância, egocentrismo e culto à sua própria individualidade. Trata-se de um homem multifacetado que também representa diferentes camadas da sociedade brasileira: sofre preconceito por ser negro, não se cala frente a situações de racismo ou desigualdade, tem uma postura de malandro boêmio, ostenta tudo aquilo de valioso que o dinheiro pode fornecer e confronta aqueles que estranham sua personalidade.
O diretor Leonardo Domingues estabelece as múltiplas condições de Simonal também através da construção específica de algumas sequências. Enquanto ainda era desconhecido, o personagem aparece cantando em uma festa de pessoas ricas e, em seguida, saltando na piscina que, por convenções injustificadas, não poderia receber um cantor negro – demonstração de sua determinação em questionar normas sem sentido. Já famoso, ele deixa o palco onde cantava para beber um uísque barato em um bar próximo e, depois, retorna para o show sob o acompanhamento da plateia que continuava cantando – um plano-sequência evocativo de sua origem humilde agregada ao sucesso comercial. Durante as apresentações, o protagonista é enaltecido pelo enquadramento que registra o cantor por trás, cercado por muitos fãs.
No segundo ato, a trajetória particular e as condições políticas vigentes realmente se entrelaçam a partir do que a vida do artista teve de mais controverso: sua posição dúbia em relação à ditadura militar. O cantor conseguiu ser interrogado por agentes do DOPS por conta de uma música que elogiava Martin Luther King e criticava o racismo e confrontado por amigos por lançar canções como “País tropical” durante o autoritarismo do regime. Mas, o que, de fato, enterrou sua carreira foi a imagem de delator de outros músicos para o governo atribuída a ele. A arrogância de Simonal o faz utilizar todos os meios ao seu redor para enaltecer sua própria persona e satisfazer seus interesses a qualquer custo, acreditando que poderia se aproveitar dos contatos que conseguiu com o governo – uma percepção equivocada responsável por fazê-lo ser cooptado pelos militares e, ao invés de usar a ditadura, ser usado por ela.
Atravessar os anos 1960 e 1970 também impõe ao filme o trabalho de recriação de época. De maneira acertada, o figurino transporta os espectadores para o passado através das roupas e indumentárias típicas do período e demonstra a extravagância do cantor após a fama; e detalhes gráficos de manchetes e reportagens jornalísticas sobre a jornada artística de Simonal que tomam a tela esporadicamente. De modo problemático, contudo, as imagens de arquivo da cidade e de shows são inseridas sem grande propósito dramático somente para comprovar que os fatos são baseados na realidade, o que enfraquece a condução da trama.
Do segundo ato em diante, portanto, a cinebiografia “Simonal” até pode assumir a fórmula clássica de auge e queda, mas não deixa de lado o cenário musical e político mais amplo. Trata-se, propriamente, de um filme que faz o indivíduo e o contexto se influenciarem reciprocamente, contando sobre um recorte da ditadura militar brasileira e um personagem tão complexo e contraditório como Simonal. Nesse sentido, recupera-se parte da história do país e de um personagem, durante muito tempo, esquecido e marginalizado.
Um resultado de todos os filmes que já viu.