“SERPICO” – Contra todos
Frank Serpico é um jovem policial que começa a trabalhar em Nova York nos anos 1970. Ao contrário de muitos de seus colegas, ele é idealista e se nega a aceitar suborno de criminosos locais. Em função dessas divergências inconciliáveis, resiste contra todos aqueles que tentam forçá-lo a participar dos esquemas ilícitos. Então, ao mesmo tempo que combate o crime nas ruas, enfrenta a corrupção policial de modo a colocar a própria vida em risco. Esta é a história de SERPICO, filme que coloca o protagonista em embates solitários contra forças maiores do que ele.
Sidney Lumet é um diretor de longa carreira no cinema. Em 1973, “Serpico” foi um projeto que dialogou com a Nova Hollywood. Na década de 1970, o cinema estadunidense contou com um movimento que rompeu com os parâmetros do sistema de estúdio e da “Era de Ouro de Hollywood”. Nomes Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Michael Cimino, Paul Schrader e Brian de Palma estabeleceram uma autoralidade que se sobrepôs às influências dos produtores e lançou um olhar crítico sobre a sociedade estadunidense. Não há como desvincular o contexto cultural do país dessa obra de Sidney Lumet, mesmo que ele não estivesse claramente ligado à Nova Hollywood. A jornada do protagonista, que compreende a luta de um indivíduo contra as contradições de várias cidades nos EUA, sobretudo a corrupção e o aumento da criminalidade urbana, simboliza a abordagem crítica sobre um período caracterizado por transformações sociopolíticas e problemas estruturais crônicos.
Em pouco tempo, a narrativa evidencia o conflito a que o protagonista está submetido. Na primeira sequência, ele aparece sendo levado para o hospital após ser alvejado no rosto. O cineasta trabalha as cenas iniciais de maneira a sugerir que seus companheiros de polícia seriam os responsáveis pelo incidente, pois mostra os eventos ao redor da situação de vida ou morte como sinais de que os demais agentes seriam uma ameaça. O embate entre o personagem e a corporação recebe tons irônicos graças à fragmentação narrativa que transita por diferentes temporalidades. O filme tem início com um momento futuro e, em seguida, retorna no tempo para a formatura de Serpico, quando o discurso cerimonial trata da integridade moral necessária na profissão e se torna um paradoxo em relação aos crimes cometidos pela polícia. Mais adiante, a montagem adquire a função de indicar a passagem do tempo através de detalhes sutis (o crescimento de um cão e o aumento do tamanho da barba do protagonista) e a extensão crescente dos perigos para um profissional íntegro em um ambiente corrupto.
A cada novo trabalho, Serpico se depara com pequenos atos de corrupção que escalonam para atitudes mais graves. Inicialmente, ele não gosta da troca de vantagens entre os policiais e o dono do restaurante próximo à delegacia (refeições gratuitas por vaga dupla no estacionamento); em seguida, ele se opõe ao parceiro que não quer atender a um chamado da central a respeito de um estupro esperando que outra viatura atenda; e não pode ser reconhecido como o autor da apreensão de criminosos por ser algo que não caberia a um simples policial, mas que deveria ficar com os investigadores. É interessante perceber que os embates travados pelo personagem guiam o olhar pelo espírito de uma época de contracultura e reações conservadoras, e de exclusão de certos grupos, como os gays e hippies (citados pejorativamente como ofensas) e os negros (retratados em sua comunidade sob aspectos adversos e características culturais específicas).
O sentimento de solidão que cresce em torno de Serpico enquanto luta contra a corrupção policial se torna central para a narrativa graças ao trabalho de Al Pacino. O ator cria uma figura excêntrica e dotada de traços diversos que vão além da força moral de quem não sucumbe à corrupção. O agente demonstra interesse por artes, como frequentar um curso de literatura e apreciar música, e reage de distintas formas aos conflitos que vive. A princípio, ele manifesta grande desalento por parecer o único que se opõe aos esquemas ilegais feitos pelos policiais com criminosos, sentindo assim que não poderia contar com a ajuda de qualquer pessoa para combater as extorsões realizadas. Com o passar do tempo, o desânimo se transforma em revolta profunda, o que o faz agir violentamente, por exemplo, nas sequências em que captura sozinho o responsável por apostas ilícitas e confronta seus colegas profissionais. O descontrole emocional faz com que o personagem não se sinta sozinho apenas no trabalho, já que sua raiva incontida reverbera em seus relacionamentos amorosos com Laurie e Leslie e gera separações desagradáveis.
Não é apenas a composição de Al Pacino que evidencia a posição solitária que Serpico ocupa em todos os âmbitos de sua vida. Ao longo da narrativa, o protagonista trabalha como policial de vigilância pelas ruas, agente de investigação de impressões digitais e investigador à paisana. A insistência de trabalhar disfarçado até possui uma explicação dentro da trama, no caso permitir a ele se misturar pela população em diferentes espaços e, de fato, investigar os crimes por dentro de suas condições sociais específicas. No entanto, este elemento ajuda a reforçar o quanto Serpico se coloca como alguém destoante dos outros personagens. O figurino muito chamativo com cores e combinações de peças incomuns para um policial, geralmente trajado com roupas sóbrias, o faz ser confundido com criminosos, hippies, viciados ou mendigos. Em sentido similar, suas características físicas que antes o faziam se misturar entre os outros policiais como mais um, logo se transformam em marcas distintiva claras quando o bigode e a barba crescem.
Embora as atenções costumem se voltar para a performance do ator principal, Sidney Lumet também trabalha a ideia de uma cruzada individual e solitária contra uma instituição corrupta a partir de escolhas dramatúrgicas e formais significativas. O roteiro destaca gradualmente que Serpico deixa de perseguir delinquentes nas ruas das cidades onde atua e se concentra no confronto contra policiais de diversos setores, criando uma dramaturgia perigosa em que ele precisa enfrentar os próprios pares, inclusive os superiores hierárquicos. Diante disso, é possível sentir o cerco se fechando em torno do protagonista a cada novo profissional com quem mantém contatos frustrados para denunciar e combater a corrupção na polícia, mas também em uma cena externa em que é rodeado por um grupo de colegas. Mesmo em um ambiente aberto, a decupagem é claustrofóbica ao manter sempre planos fechados no grupo que o cerca tão próximo. A falta de apoio igualmente aparece na sequência em que leva o tiro, filmada com o intuito de expressar a tensão em planos detalhes que compõem sua tentativa de entrar na casa de um suspeito e em planos mais abertos que demonstram seu isolamento naquela ação.
Muitos filmes policiais sobre agentes corruptos já foram feitos. Indubitavelmente, aqueles que vieram após 1973 tiveram “Serpico” como referência. Grande parte da inspiração se deve à maneira como o filme de Sidney Lumet retrata o progressivo isolamento de Frank Serpico após tantas tentativas de manter sua integridade moral e desafiar a corrupção institucionalizada na polícia estadunidense. Os impactos de suas ações o fizeram cair em um profundo isolamento e em uma crescente solidão em termos profissionais e pessoais. E, nesse sentido, a narrativa avança até um desfecho que não poupa o espectador da melancolia e do desalento de ver um personagem em uma luta maior do que ele seria capaz de suportar. Tamanho efeito transborda a tela ficcional do cinema e alcança a vida real no letreiro final que anuncia se tratar de uma história baseada em fatos, na qual o verdadeiro Frank Serpico permaneceu atuando contra todos.
Um resultado de todos os filmes que já viu.