“SERGIO” – Biografia em uma encruzilhada
Na abertura, o protagonista grava um vídeo sobre o trabalho na ONU falando sobre as dificuldades de resumir uma vida em alguns minutos e a percepção de que a história precisa inspirar. A fala sintetiza o que acontece, positiva e negativamente, com o filme original Netflix SERGIO: o equilíbrio instável entre thriller político e drama emocional na reconstrução da trajetória de Sergio Vieira de Mello.
Diplomata brasileiro das Nações Unidas e Alto Comissário para os direitos humanos, o homem participou de muitas missões humanitárias em países assolados por crises socioeconômicas e conflitos militares. Na obra dirigida por Greg Baker – antes responsável por um documentário homônimo sobre o personagem para a HBO – o foco reside em suas atividades em Bagdá até sua morte, vítima de um bombardeio. Baseando-se no livro “O homem que queria salvar o mundo“, de Samantha Power, a narrativa também traz seu envolvimento amoroso com a diplomata argentina Carolina Larriera.
Apesar de se iniciar mostrando a atuação de Sergio e sua equipe no Iraque, existem outras linhas cronológicas do trabalho feito no Camboja e no Timor Leste, todos voltados para a garantia do direito básico a uma vida digna àqueles cidadãos. A necessidade de transitar de uma missão a outra revela alguns problemas: depender bastante da organização temporal dos fatos através de flashbacks sucessivos e de cartelas indicativas do período em questão, bem como carecer de ligações entre as idas e vindas no tempo (inicialmente memórias ou alusões ao passado traziam à tona esses outros momentos, porém mais à frente se esvai a preocupação de costurar organicamente as transições).
Além da fragilidade em encadear as mudanças cronológicas, o retrato político dos três países abordados não escapa da superficialidade, de resoluções rápidas ou da presença de lacunas significativas. O Camboja é visto muito rapidamente na conversa de Sérgio com o líder militar do Khmer Vermelho, desperdiçando a chance de explorar a crise humanitária do lugar e dos pontos em comum entre os dois homens. O Timor Leste é um pouco mais esmiuçado em seus atritos com a Indonésia e nas condições da população, mas a conclusão da guerra parece se encerrar apenas com algumas frases de efeito do diplomata. Já o Iraque oscila entre a demonstração dos limites de atuação da ONU e o desenvolvimento incompleto das tensões entre a organização e o governo estadunidense (a contradição entre reconstruir uma democracia e interferir na soberania nacional por interesses próprios fica vaga).
No limiar entre as fortalezas e as fraquezas da produção está a composição do personagem por Wagner Moura, não tanto pela entrega do ator. No que depende dele, é criado um indivíduo idealista que se vê realizado quando trabalha em campo fora de escritórios e deve se adaptar a cada situação sem perder a humanidade; demonstra o poder da argumentação bem articulada para executar estratégias de ação, a firmeza de expor suas ideias enquanto entra em discussões pelo que acha certo e a simpatia de deixar naturalmente sorrisos estamparem seu rosto durante os diálogos com os mais necessitados. O intérprete também convence no desafio de viver alguém que tem contato diário com vários idiomas, chegando a falar em pouco tempo frases em inglês, português, espanhol e francês. No que depende do roteiro existem fragilidades em desenvolver o protagonista.
O texto assinado por Craig Borten desperdiça o potencial do personagem e do ator por não construir conflitos ou dilemas internos sólidos o bastante: trabalhar as consequências de um erro cometido por Sergio na segurança de sua equipe poderia gerar um arco narrativo caso fosse um elemento inserido no primeiro ato e não um ponto comentado brevemente no fim do segundo ato; e desenvolver a relação (ou falta dela) entre o protagonista e seus filhos, distanciados pelo envolvimento com seu trabalho, poderia render se não fosse somente citado como um fato passageiro na vida. Até mesmo o conflito escolhido – o esforço para fincar raízes na terra natal – aparece e desaparece frequentemente sem que seja estabelecido de modo gradual por toda a narrativa.
A dimensão emocional funciona quando o diplomata se aproxima e interage com Carolina. O arco de construção do romance entre eles perpassa a questão profissional e inclui também debates sobre suas possibilidades de futuro sem os riscos contínuos na ONU (algo em sintonia com o principal conflito da trama). A partir da calorosa dinâmica entre Wagner Moura e Ana de Armas, momentos e imagens visualmente expressivos são criados por Greg Baker, como a concretização do relacionamento em um quarto decorado, os flashes de belas paisagens no mar do Rio de Janeiro (planos imaginativos e líricos sobre percepções do passado e anseios do futuro tendo como pano de fundo a natureza da cidade) e a despedida nos escombros do bombardeio.
Mesmo que a proposta de “Sergio” seja destacar e humanizar a vida pessoal do diplomata brasileiro, especialmente através de suas relações afetivas, a narrativa também escolhe tratar os aspectos políticos das missões no Iraque, Timor Leste e Camboja. Dessa maneira, faz falta ao filme aprofundar os acontecimentos em torno das atividades diplomáticas e até corrigir inconsistências específicas nos conflitos dramáticos ao redor do personagem. Assim, o clímax emocional, por mais forte que seja em uma vila no sudeste asiático – sonhar em subir aos céus para se tornar uma nuvem e, por fim, a água que cai sobre a terra -, não viria apenas de uma moradora local, mas também do homem que dá título ao filme.
Um resultado de todos os filmes que já viu.