“SEM SEU SANGUE” – Coming of age mais abstrato que lógico
A safra recente de filmes brasileiros de terror não pode ser enquadrada em rótulos. Títulos como “A sombra do pai“, “Morto não fala“, “Cemitério das almas perdidas” e “Christabel” atestam, decididamente, a pluralidade do cinema de gênero no país. Ainda assim, alguns temas vêm sendo constantemente explorados pela perspectiva do horror, como problemáticas sociais ou identitárias, a questão da maternidade e a sexualidade. E, no caso específico de SEM SEU SANGUE, o amadurecimento para a vida adulta é o mote para uma narrativa que busca abstrair qualquer racionalidade desse período de mudanças.
Sob a direção da estreante em longas-metragens Alice Furtado, a produção se estrutura em torno da introvertida Silvia. Ela possui completo desinteresse por sua rotina até conhecer o colega de escola Artur, que demonstra força e vitalidade apesar de ser hemofílico. O relacionamento que iniciam faz a jovem se sentir mais viva e menos tímida, enquanto não ocorre um grave acidente responsável por separá-los.
“Nem todos os acontecimentos seguem uma lógica”. Essa ideia é anunciada pela narração em voice over de Silvia enquanto a abertura mostra Artur se banhando no mar, sendo capaz de apresentar a sensação predominante da obra. Alice Furtado está mais interessada em dar vazão a estímulos e experiências durante o crescimento juvenil que não sejam elaborados racionalmente. Isso transparece, por exemplo, na forma espontânea como filma as primeiras sequências: as composições visuais não seguem regras formais porque acompanham os movimentos corporais dos personagens (como quando o rapaz joga futebol); o design sonoro demonstra o caos de situações entediantes para os adolescentes (como quando uma aula de Literatura é preenchida por ruídos da mente dos alunos); e as transições de cenas se sobrepõem os planos com uma plasticidade estilizada (assim são as lembranças de Silvia sobre os momentos partilhados com o namorado).
Essas fragmentações visuais e sonoras se articulam com os arcos emocionais dos protagonistas, dentro de uma melancolia que ultrapassa explicações racionais concretas. Artur parece ter uma relação positiva com a mãe e a irmã (mesmo que com esta não tenha uma convivência tão próxima) e se divertir andando de skate e jogando futebol, mas sofre com as restrições impostas pela doença (como diz, deseja ter mais liberdade). Já Silvia vive um vazio existencial, em que parece se fechar em seu próprio universo sem amigos, proximidade com os pais ou algo diferente do celular. E principalmente a interação entre os dois se afasta de expectativas comuns, pois nenhum deles expressa seus sentimentos diretamente e o relacionamento é definido pelas sutilezas – os momentos em que estão juntos podem soar frios, porém são marcantes para ambos.
A partir da brusca separação do casal, a narrativa se transforma sem abandonar a abordagem estética abstrata já estabelecida. A reação de Silvia a um trágico acontecimento é a pior possível, deixando-a em um estado de torpor que suga suas energias e provoca consequências inesperadas em seu corpo – nesse segmento, Luiza Kosovski define um tom coerente para a inexpressividade da personagem com seus semblante vazio. Nessa virada da trama, a cineasta flerta com um estilo análogo ao gore e ao desconfortável (que se relaciona com Artur principalmente em uma cena em que ela retira sangue da boca), mas parece tímida em seguir por esse rumo. Na realidade, fica a impressão que são cenas de transição entre o namoro dos adolescentes e seus desdobramentos para a garota, de modo a remeter também ao amadurecimento forçado da idade.
Quando a família de Silvia decide viajar, a intenção inicial era ajudar a jovem a relaxar e recuperar a vitalidade em contato com a natureza. Entretanto, o efeito é outro: a protagonista passa por mudanças ao lidar com uma série de influências que a motivam a tentar trazer Artur de volta ao seu convívio, acompanhando mais uma transformação ocorrida na narrativa. Em termos estilísticos, a abstração pensada pela diretora se direciona para o sobrenatural, também dispensado justificativas e desenvolvimentos racionais. Embora seja uma escolha coerente para a proposta dramática, o minimalismo na progressão dos fatos enfraquece os símbolos visuais e as analogias. Assim, para os espectadores menos atentos, a entrada de novos personagens parece aleatória e os impactos dos livros lidos por Silvia, dos filmes exibidos na TV da casa alugada e dos animais próximos da garota parecem superficiais.
O terceiro ato, portanto, é a irrupção do sobrenatural como havia sendo preparado até então para chegar a um subgênero do terror. Especialmente, graças à fotografia com luzes neon em algumas passagens, à trilha sonora composta por ruídos de tambores e à construção cênica até a revelação de imagens sangrentas, uma atmosfera enigmática e angustiante é estabelecida em torno da protagonista. Afinal, o coming of age nem sempre pode ser confortável, idílico e explícito como muitas vezes se vê no cinema; pelo contrário, pode ser agressivo, desolador, desnorteante e fragmentador. Dessa forma, “Sem seu sangue” não dá respostas fáceis para as jornadas de Silvia e Artur nem utiliza a lógica para conceber sua narrativa, pois a ideia é provocar o público para estimulá-lo a construir associações abstratas ainda que exagere nas sutilezas do subtexto.
Um resultado de todos os filmes que já viu.