“SEM CORAÇÃO” – Memórias fluidas de um tempo e de um local [25 F.Rio]
É recorrente observar no cinema um longa metragem se originar da expansão de um curta metragem. É igualmente comum reconhecer experiências pessoais dos realizadores serem inspiração para a produção de uma ficção. Os dois caminhos fazem parte de SEM CORAÇÃO, um trabalho memorialístico sobre o litoral de Alagoas e a adolescência nos anos 1990. Tal qual a fluidez das memórias, a narrativa também apresenta uma espontaneidade que engrandece parte de seu universo enquanto adormece outra.
Na sua origem, a história começou a ser desenhada no curta-metragem homônimo lançado em 2014. Na sua base mais antiga, os eventos são ficcionalizados a partir das lembranças de infância da diretora Nara Normande. No verão de 1996, Tamara aproveita suas últimas semanas em uma vila pesqueira onde mora antes de viajar para estudar em Brasília. Seus dias transcorrem na companhia de um grupo de amigos, com os quais se diverte e vivencia novas experiências. Um dia, ela ouve falar de uma adolescente apelidada de Sem Coração e, ao longo daquela estação, sente uma atração crescente pela jovem.
Como se trata de uma obra originária de recordações de Nara Normande, ela e o diretor Tião não criam uma trama linear que, necessariamente, passe por um conjunto de eventos esperados e racionais. Muitas sequências se entrelaçam sem uma relação de causa e consequência aparente, a fantasia preenche muitos momentos, o tempo se torna fluido e as alegorias formam relações entre os personagens. Por conta do fluxo livre, a narrativa se divide em dois segmentos: a convivência autêntica de Tamara com Vitor, Galego, Binho e seus outros amigos e o fascínio misterioso sentido pela protagonista em relação a Sem Coração. Então, a produção se desenrola passeando de um bloco a outro com uma encenação predominantemente genuína e realista. No entanto, falta um maior equilíbrio entre as duas partes para que uma delas não se sobressaia tanto em comparação a outra.
A história de amizade de um grupo de adolescentes no litoral alagoano durante a década de 1990 funciona muito bem. Eles passam o dia tomando banho no mar, jogando futebol, conversando na areia da praia, pescando, indo a festas e até invadindo casas alheias por diversão. Em todos esses momentos, o cotidiano é simples e proporciona alegria sem precisar de muito porque a companhia um do outro já é o suficiente. Além disso, a maneira como os personagens interagem com o ambiente amplia a naturalidade de suas relações e entrelaça o prazer de acompanhar aqueles jovens com a ocupação que fazem dos cenários: tocam o pé descalço em qualquer superfície por onde passam, entram em contato com a água do mar, descansam com a pele sobre a areia e frequentam uma piscina vazia. Somando cada aspecto, os espectadores se sentem próximos àquelas figuras, identificam-se com elas e percebem a autenticidade genuína de muitas cenas. É o caso, por exemplo, dos meninos que assistem a um filme erótico e se masturbam no mesmo cômodo, algo filmado com uma simplicidade que evoca um senso de verdade.
Concomitantemente, o filme também explora o interesse misterioso de Tamara por Sem Coração, que promove gradualmente uma aproximação entre elas. A personagem vivida por Eduarda Samara desperta curiosidade do público por conta do apelido em razão da cicatriz na altura do órgão e, sobretudo, do tratamento recebido dos outros jovens. Mesmo que ninguém saiba explicar o porquê, ela é excluída e sofre discriminação. A julgar pelo título, era de se esperar que tivesse uma importância central para a história contada, mas tudo que gira em torno dela parece desvalorizado pelo roteiro e pela encenação dos diretores. O mistério para a exclusão de Sem Coração deixa de ser representado, a contradição por trás do fato de a convivência com a adolescente ser desejada apenas para satisfazer sexualmente os garotos não é trabalhada e a composição familiar abalada pela perda da mãe e pela distância emocional do pai é mencionada apenas esporadicamente.
Enquanto isso, o desenvolvimento da relação entre os amigos se torna mais atrativo porque Tamara não é a única a receber destaque. Os arcos dramáticos de Galego e Binho evoluem com complexidade e sensibilidade. O primeiro tem suas contradições realçadas por ser um jovem carinhoso com os colegas, extrovertido no modo como demonstra autoconfiança (nem sempre verdadeira) e marcado pela criminalidade (realmente cometida por ele ou insinuada como preconceito). O segundo sofre com a homofobia da região quando se envolve amorosamente com outro garoto, mas encontra apoio emocional dos amigos para ser quem é apesar da violência sofrida. Se a relação direta com a natureza proporciona prazer, a cidade em si pode ser violenta e limitadora para alguns personagens. Nesse sentido, cria-se um contraponto entre a protagonista que está prestes a deixar o local para estudar e seus amigos que não escapam de uma realidade indesejada.
O desenvolvimento da relação entre Tamara e Sem Coração não tem a mesma força dramática. A primeira jovem até tem um conflito interno mais sólido ao redor do arco de uma trama de amadurecimento juvenil, o que possibilita a Maya de Vicq ter momentos expressivos de atuação. Como exemplo, existe a sequência em que Tamara e a mãe conversam sobre sentir medo de situações que tanto almeja experimentar. Esta é também a oportunidade de Maeve Jinkings criar uma figura materna sensível que aconselha a filha sem saber que a dúvida envolvia o desabrochar da sexualidade. Em contrapartida, o relacionamento com Sem Coração não se beneficia tanto do realismo fantástico criado através das alegorias propostas por uma baleia gigante e pelo fogo retirado do interior do animal. Esta magia é interessante visualmente, mas não atinge um clímax devido ao adiamento de um encontro realmente intenso entre elas.
Nara Normande e Tião possuem um rico material à disposição e constroem uma encenação envolvente em muitas passagens. Nas mãos da dupla, a subjetividade das memórias de adolescência da realizadora se funde a uma abordagem que transita pelo realismo mágico e pela sensação de realismo. Assim, o filme “Sem coração” aborda tanto a importância do litoral de Alagoas quanto a fase da juventude como elementos essenciais de uma história de jovens que começam a acessar o mundo ao redor. Ao longo do processo, a amizade dos adolescentes ofusca e não potencializa a descoberta do outro marginalizado.
*Filme assistido durante a cobertura da 25ª edição do Festival do Rio (25th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.