“SEGREDOS DE GUERRA” – Artigo 121 [46 MICSP]
No artigo 121 do Código Criminal da Federação Russa (no período da União Soviética), a homoafetividade (muzhelozhstvo) era um crime punível com privação de liberdade por até 5 anos. É simbólica a coincidência que, no Código Penal brasileiro, o artigo 121 seja referente ao delito de homicídio. A homoafetividade não tinha a mesma gravidade jurídica do homicídio, mas era axiologicamente comparável ainda mais em se tratando de soldados como os apaixonados de SEGREDOS DE GUERRA. Apesar da descriminalização em 1993, os retrocessos contemporâneos sobre a matéria são evidentes, uma comparação que o filme faz no retrato de uma história real.
Durante a Guerra Fria, Sergey conta os dias para a sua liberação do serviço militar, do qual pretende manter apenas a amizade com Luísa, a secretária do coronel da base. Quando chega um novo piloto, Roman, Sergey e Luísa rapidamente se interessam por ele, iniciando um perigoso triângulo amoroso apto a destruir carreiras, acabar com amizades e encarcerar os envolvidos.
Pode parecer que o filme seja mais um romance gay triste sobre a homossexualidade velada, os riscos de um amor suprimido e o lamento de um preconceito doloroso. Realmente existem elementos clichês na obra de Peeter Rebane, além de escolhas definitivamente ruins (por exemplo, o fato de as personagens falarem inglês com idioma russo). Entretanto, tratando-se de uma história real baseada no livro do verdadeiro Sergey Fetisov (que originou o roteiro assinado por Rebane e Tom Prior), há no longa uma sensação de realidade que o torna emocionante, ainda que previsível.
Parte dessa sensação de realidade é resultado da boa direção de Rebane, capaz de moldar uma atmosfera romântica do casal principal que desemboca em uma sensualidade voraz sem espetacularizar a relação. Na cena em que Roman e Sergey revelam fotos, aparecem em planos-detalhe seus braços se cruzando e suas mãos se tocando com apenas sons diegéticos do tato e do líquido revelador (um deleite de ASMR, inclusive). Posteriormente, na cena com os guardas de fronteira, um impulso representa o ímpeto vulcânico de se entregar pela excitação sexual reprimida. Mesmo nas cenas de sexo, há planos-detalhe priorizando o tato de maneira sensual e romântica, tradução imagético-sonora de que não há apenas uma atração física efêmera.
Antes do toque, Rebane coloca Sergey e Roman como voyeuristas – não à toa, compartilham o hobby da fotografia. Há muitos olhares silenciosos, o que é benéfico para Tom Prior que, além de roteirista, interpreta Sergey e é bastante expressivo em seu olhar. Prior inicia com um Sergey que confunde a amizade por Luísa com o amor, descobrindo o segundo sentimento ao conhecer Roman – este vivido por Oleg Zagorodnii, bastante inferior a Prior. A sensação de realidade se faz presente na medida em que, ao contrário do que seria de se esperar, o romance entre os dois não é uma sequência interminável de alegrias com um fator complicador que surge repentinamente, mas uma relação desigual desde a sua gênese. Roman é hierarquicamente superior a Sergey, o que facilita a invenção de desculpas para o tempo compartilhado, mas também se reflete no cotidiano deles enquanto casal. Enquanto Sergey cria planos para que vivam felizes (mesmo que escondidos da sociedade), Roman interrompe esses planos ao manter os pés no chão. Mais do que isso, Sergey é visivelmente o mais apaixonado. Até mesmo quando estão juntos em um local vazio, quando o protagonista questiona Roman sobre Luísa enquanto acaricia seu tórax, a resposta que obtém é “depois, Sergey”, ou seja, Roman, neste momento, como em diversas outras ocasiões, é quem comanda a relação.
Tanto é Roman quem comanda a relação que é ele quem vai atrás de Sergey quando este se ocupa com seus novos planos profissionais. Rebane filma os dois em um two-shot frontal no qual eles se encostam em uma parede com uma rachadura no meio, metáfora visual para a desunião daquele instante. A partir dali, o olhar idealizado de Sergey é muito mais realista e se torna decepcionado quando Roman declara, de maneira não verbal, que a sua prioridade é a família formada com Luísa (Diana Pozharskaya, sem destaque). Não que Roman não fosse apaixonado, mas não tinha a mesma coragem de Sergey de se entregar ao amor. E de fato era preciso muita coragem, pois o amor era criminalizado tal qual o homicídio. Foi graças a pessoas como Sergey, que registrou sua história em livro), que foi possível avançar um pouco (apesar de retrocessos no mesmo interregno). Que Sergey sirva de inspiração hoje e sempre.
* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.