“SARAH INTERPRETA UM LOBISOMEM” – Flagelo da autocompreensão
* Filme assitido na plataforma da FILMICCA.
Fugir de quem somos faz parte da nossa natureza. É tentadora a possibilidade de incorporar uma personalidade além da nossa, conforme o cinema bem exemplifica. Ao instigar a representação do real a partir da reprodução imagética, ele convida o ator a emular o outro, conhecendo melhor a si mesmo ou talvez até se perdendo naquele em que investe a dimensionar. SARAH INTERPRETA UM LOBISOMEM fabula bem em cima dessa ideia, mergulhando nas facetas de uma jovem perdida entre a própria essência e suas projeções mais intensas.
Dedicada a se tornar uma exímia atriz, Sarah tenta anular as complexidades de sua vida ao se transportar, com bastante aderência, a demais carcaças. Enquanto ela se prepara para uma peça de extrema importância, entretanto, as circunstâncias ao seu redor apontam para uma crise iminente.
Transitando entre os estado mais subjetivos e concretos de sua protagonista, chama a atenção o jogo empregado pela diretora Katharina Wyss na dramatização de pequenos estímulos. É como se todo e qualquer momento estivesse sujeito a uma lógica cênica, seja ela impressa pelas escolhas de luz e enquadramento ou intenções empregadas pela presença de movimentos de câmera específicas. Ela converte uma espécie de margem de improviso, notificada pela presença de momentos de distensão e de construção de aspectos mais periféricos das personagens, em demonstrações de extremo controle sobre o drama e o suspense de seus conflitos.
Isso fica evidente especialmente na intensa relação que ela estabelece com o pai, um homem metódico e difícil de se relacionar. Embora o afeto do e pelo último seja bastante claro, não demora a se estabelecer o duelo dramático residente entre as personagens. Sarah investe em paródias e mimeses, e acaba empregando, mesmo que inconscientemente, maneiras de tentar compreender a sua psique. É uma espécie de demolição de carapuças, em que uma figura tenta pensar feito a outra para adentrar as suas camadas mais profundas
Talvez o título da obra esteja nessa metamorfose, justificativa pela constante diluição que Sarah acomete a si mesma. Angustiada pela falta de entendimento de sua razão de ser, a personagem de Loane Balthasar traz uma dubiedade fluída entre as passagens mais literais e as mais abstratas do longa, e que passam a denunciar um temido desgaste interno.
Sarah se revela uma força propulsora com um talento igualmente deslocado para a atuação e a destruição, hospedeira de um instinto indomado que teme em reconhecer não importem quantos aspectos estejam ali para justamente denunciá-lo. À medida em que os laços familiares, dos quais se desloca em seu universo psíquico particular, passam a ruir ainda mais, os seus traços mais impulsivos tornam a se revelar, permitindo à câmera substituir as sutilezas por uma presença mais imperativa e que busca, de maneira curiosa, compensar a perda de uma disciplina dominante durante os primeiros atos.
É nessa altura que os enquadramentos passam a se tornar menos formalistas, como se a sedação autoinflingida por Sarah estivesse em declínio, e os contornos dos simbolismos ali esculpidos se tornassem cada vez mais rasos. Isso se explicita particularmente em um dos ensaios mais intensos que a protagonista atravessa, aprisionada pela janela de exibição do projeto enquanto a lente cada vez mais próxima tenta extrair, quase à força, à máscara moldada com a sua própria carne.
Tem-se assim um assustador mergulho dentro de uma psique especializada na projeção e simulação de terceiros, incapaz de reconhecer a própria obscuridade. É no reconhecimento dos limites desse exercício de transformação que “Sarah interpreta um lobisomem” ganha a sua maior força, fazendo de seu título pouco usual apenas um pontapé da catarse que se constrói de maneira intrínseca às misturas entre a fantasia e a realidade.