SANGUE DE PELICANO – Crise de identidade [43 MICSP]
Quando o filme se propõe ao terror, precisa ser consistente na linguagem particular desse gênero. A transição do drama para o terror não é impossível, sobretudo porque não existe uma fórmula fixa – no máximo, convenções. O que é errado é não decidir o gênero e variar entre ambos, como faz SANGUE DE PELICANO.
Na trama, Wiebke Landau, treinadora de cavalos, está se preparando para ter uma segunda filha através de adoção. Raya, a criança adotada, de apenas cinco anos, apresenta distúrbios de comportamento, revelando-se agressiva com todos que dela se aproximam. Contrariando as orientações dos profissionais, Wiebke decide ajudar a menina à sua maneira.
A atriz que interpreta a protagonista, Nina Hoss, não tem culpa de sua personagem ser tão inconsistente. Talvez o processo de adoção na Alemanha seja flexível como o filme mostra (sem acompanhamento posterior e com possibilidade de devolução), mas isso não justifica a desconsideração dos conselhos do psiquiatra. Quando ela diz que, se Raya voltar ao orfanato, ninguém vai amá-la (sem explicar o porquê), a resposta dele já poderia servir de convencimento: não é só de amor que a menina precisa. A suspensão da descrença permite ignorar a decisão pouco crível de Wiebke. Talvez os livros que ela leu indiquem que ela está certa ao adotar medidas questionáveis para fazer com que Raya se torne sociável.
Isso não explica, porém, a enorme contradição em rejeitar “histórias de fantasmas” para depois aceitar o uso de métodos espirituais por indicação da mesma pessoa. A criança vai se tornando uma obsessão sem sentido: Wiebke passa a ignorar a primeira filha – o que não é visão desta, mas fato amplamente demonstrado (como ao deixar de ler histórias para dormir) – e chega a prejudicar o próprio trabalho. Como uma mãe sem o amparo de nenhuma outra pessoa arrisca o próprio emprego para tentar ajudar uma criança recém-adotada que poderia ter tratamento por profissionais adequados? De que adiantaria resolver o distúrbio de Raya se depois ela não teria mais remuneração?
O roteiro de Katrin Gebbe se esforça para formar uma narrativa complexa, com duas tramas principais – a da adoção e a do cavalo rebelde – que se comunicam. Entretanto, o subtexto é quase nulo (apenas mencionar que mulheres solteiras que trabalham não podem adotar órfãos na Alemanha não chega nem perto de ter um viés crítico), assim como as subtramas. Exemplo disso é Benedikt, interpretado por Murathan Muslu, que tem um romance insosso com a protagonista. A despeito das boas intenções, o policial é, no mínimo, ingênuo – sem olvidar a tranquilidade inverossímil em relação ao que Wiebke faz. Na cena em que ele aceita cuidar de Niki por uma noite, sua ingenuidade se revela risível.
Para além de diálogos ridículos – no estilo “você não pode estar, mas você precisa estar” -, o filme tem erros primários, como de continuidade (atenção para a cena da pintura da parede com as mãos). Como se não bastasse, Katrin Gebbe dirige o longa com crise de identidade, mesclando a linguagem do drama (texto, trilha musical, explicações sobre a condição psicológica de Raya) com a do terror (cenas cafonas e jump scares absolutamente desnecessários).
O resultado não poderia ser diferente: o longa falha nos dois gêneros. No terror, não há nada aterrorizante na película, no máximo, talvez, os diálogos. A migração do realismo para o surreal é inorgânica, primeiro por ser uma contradição de Wiebke, segundo por não combinar com o encaminhamento dado à narrativa em sua maioria. Não faz sentido dar tanto espaço para explicações médicas se o resultado será o clichê do terror. Nessa parte, um problema ainda mais grave é o esvaziamento da parte séria da trama. Se o filme começa prometendo uma conscientização sobre maternidade (ou paternidade) responsável, descambar para um terror genérico é decepcionante. Eliminando o terço final, pode ser que sobrasse algo apenas medíocre. A crise de identidade não permitiu.
* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.