“SALAMANDRA” – Simbologia desperdiçada
No contexto espiritual, a salamandra é um animal que pode simbolizar transformação, renovação e purificação. Conseguiria se adaptar à terra e à agua, sobreviveria ao fogo e eliminaria energias negativas quando fosse purificada. De maneiras variadas, SALAMANDRA tenta utilizar tal simbologia para dar conta da jornada emocional da protagonista em direção à constituição de outro indivíduo. Os símbolos, por si só, até se encontram na narrativa, mas em uma abordagem formulaica, apática e de pouca identificação.
A personagem comparada ao animal é Catherine, uma francesa que passou anos cuidando do pai doente. Após a morte dele, a filha se sente sufocada e decide partir para outra realidade. Chegando a Pernambuco, é recebida pela irmã e pelo cunhado no apartamento deles. Em um dos dias em que relaxa em uma praia, Catherine conhece e se envolve com o jovem Gil. O romance parece ser um recomeço até o instante em que a relação a leva para um desfecho trágico.
O diretor Alex Carvalho se inspira no livro “La Salamandre” de Jean-Christophe Rufin para desenvolver seu filme. Inicialmente, a trajetória da protagonista parte de um universo desconfortável que possibilita bons momentos. Não são muitas as pessoas em Recife que sabem falar francês, por isso a mulher sofre com a incomunicabilidade. Além disso, sua presença também parece deslocada daqueles ambientes litorâneos e de moradores simples da região. As sequências em que ela mal consegue manter um diálogo claro com outros personagens ou passa muito tempo em silêncio na praia exploram essa diferença com eficiência. A sensação de estranhamento que se instala no início do relacionamento entre Catherine e Gil é outro aspecto pertinente para situar o estágio em que ela se encontra para efetuar a transformação desejada.
Como a jornada da francesa centraliza as atenções da narrativa, é possível entender o filme como um estudo de personagem. A trama progride no sentido de caracterizar Catherine, mostrar suas contradições e desejos, levar o espectador a mergulhar em sua dimensão emocional em uma escala íntima e destacar as modificações psicológicas pelas quais passa. Apesar disso, Alex Carvalho tem dificuldade de criar uma conexão entre o público e a protagonista desde os primeiros elementos da jornada transformadora. Isso porque a encenação recai nos clichês do cinema europeu, exagerando nos tempos mortos, nas cenas de contemplação vazia e no enquadramento da mulher no centro de um quadro sufocante por conta do amplo espaço ao redor. Ao mesmo tempo, o cineasta representa com frieza os efeitos da perda do pai e a necessidade de deixar seu país de origem, fazendo com que o trabalho de Marina Foïs seja pautado por lacunas e ausências que se assemelham à falta de sentimento de quem não passou por nada impactante.
Por sua vez, a relação amoroso com Gil passa igualmente pela ideia de incomunicabilidade, dessa vez, de forma menos atrativa. Não conseguir se fazer entender, não assimilar o que o outro tem a dizer e sentir dificuldades com uma cultura diferente criam vazios, hiatos e quebras nas interações. A princípio, cada descompasso está presente no relacionamento entre eles, que depende muito mais da atração física. Com o passar do tempo, a aproximação sentimental de ambos parece mero recurso esquemático de roteiro por ser fria ou inesperada por vir de repente em meio às lacunas de seus contatos. Assim, é difícil se envolver efetivamente com o romance. Em outro âmbito, o contraste entre a relação interpessoal contida e as sequências de sexo intensas e quase agressivas nunca é alvo de discussões pela obra, sendo simplesmente uma tentativa frágil de dar maior sensualidade ao que se vê.
À medida que o convívio com Gil se intensifica, Catherine precisa lidar com consequências inimagináveis para ela. No desenvolvimento do romance, a narrativa tenta, sem sucesso, construir suspense do que pode acontecer a curto prazo. A irmã e o cunhado alertam para os riscos de um relacionamento que pode decepcioná-la em atitudes que flertam com o racismo. Por vezes, Gil se comporta como se estivesse envolvido em atividades ilícitas que poderiam colocá-la em perigo dentro de uma dualidade que nem sempre Maicon Rodrigues transmite. No entanto, a virada de tom para o suspense não tem preparação e novamente se vê contaminada pelas lacunas de uma incomunicabilidade. O que poderia gerar dramas emocionais prejudica o desenvolvimento da tensão, pois as reviravoltas carecem de impacto, a trama se perde em acontecimentos confusos e as resoluções continuam vazias sem respostas evidentes para perguntas jamais colocadas pelos espectadores.
“Salamandra” também está refém das fórmulas batidas do cinema independente, poético e simbólico para criar visualmente o processo de transformação de Catherine. Se o animal pode viver na terra e na água, certamente terá uma cena na praia indo até o mar para sentir o poder purificador do mar. Se a protagonista tem a intenção de se recuperar de dores do passado, certamente terá uma cena de dança sem diálogo para representar o esforço de se reconectar com sua força interior. E se a salamandra pode sobreviver no fogo, pode haver uma cena de incêndio para escancarar o simbolismo fácil de uma ressurreição metafórica. Em meio a muitas obviedades e lacunas para construir o percurso narrativo, não há envolvimento emocional nem percepção de que algo se transformou na vida de Catherine.
Um resultado de todos os filmes que já viu.