“RODEO” – Raízes inscritas no asfalto
Existe uma sensação bastante libertadora no atravessar de uma estrada em alta velocidade. O asfalto desfocado que é abandonado para trás, gerando um rastro a ser ultrapassado por rodas, é potencialmente um dos signos fortes no que diz respeito à fuga, à falta de pertencimento a um “cosmos” que impera uma busca incessante. Ao explorar as dinâmicas de uma gangue de motociclistas, em constante deslocamento de um ponto a outro, é da transmissão dessa atmosfera que surge o francês RODEO, interessante conto sobre uma garota que só encontra objetivos na jornada até eles, e não necessariamente em seu alcance.
Pressionada por um turbulento relacionamento com a própria mãe, Julia segue uma vida monótona na pacata casa comunitária onde vive. O seu único prazer é o roubo de motocicletas em que se especializa, única forma de alimentar a enorme paixão que sente pelo motocross, esporte que enxerga como verdadeira válvula de escape. Conforme as suas habilidades se aprimoram, ela se vê cada vez mais inserida no universo de uma gangue de motoqueiros, inserção que passa a ameaçar a sua vida e lhe fazer questionar a própria identidade.
Dirigido por Lola Quivoron, é interessante a relação que o filme estabelece entre espaços estáticos e o fluxo constante das estradas percorridas pela protagonista. Da ausente afetividade materna que assombra a personagem à formação de uma nova e improvável família, não é difícil perceber que a direção entrelaça a fragilização das origens da personagem com o seu senso de evasão constante. Ela se sente desconexa onde quer que esteja, e faz dessa invisibilidade uma adição à fluidez do trafegar cujo vento a atravessa.
Essa mesma maleabilidade se faz presenta no alcance da atriz Julie Ledru, cujo carisma atravessa a internalização de seu mundo comum no decorrer das sequências de corrida. Seu papel converge muito bem para a ideia dos motores como forças de externalização, permitindo a ela comunicar a importância do seu escapar, para além das dinâmicas de contenção em que foi criada, apenas com o olhar.
É nesse mesmo paralelo que a montagem encontra a sua potência criativa. Racionalizada ao longo das passagens em interna, em que preserva a lógica das ações e a alternância entre os diálogos proferidos, chama a atenção o rompimento assumido nas cenas “em movimento”.
Seja pela dissociação, em alguns casos, entre o som e a imagem, permitindo às embreagens emular a sensação de suas personagens, ou o entrelaçar da estrada com a o dinamismo selvagem que escapa dessas figuras, é criado assim um certo lirismo no manejar desses caminhos.
Apesar dessas qualidades, entretanto, deixa a desejar a conclusão de Julia, uma vez que a abertura que o projeto vai encontrando em seu desenrolar acaba servindo tanto como um benefício quanto diminuição. Embora esse flerte com a composição metafórica agracie bastante o filme, é inegável que isso permite uma menor preocupação com os contornos mais literais do todo.
Isso configura também uma fotografia pouco elaborada, que em nada se dedica a imortalização dos espaços ali percorridos, mesmo que o cruzar por entre eles fale mais alto do que eles próprios, e o uso quase integral de planos em câmera na mão acaba didatizando a transmissão de certas informações. Não existe ali uma lente que se desafia na forma como decide enquadrar aquele universo, e tudo acaba infatilizado pela lógica de um olhar guiado pela ação e reação.
De todo modo, “Rodeo” é impulsionado pela maneira como converge a relação entre o fluxo e a falta de pertencimento com o drama vivido por sua protagonista. Mesmo que fragilize alguns aspectos em função de outros, ele é guiado por uma sábia direção que consegue reconhecer a beleza de seu atravessar, e não se rende à exatidão completa de alguns de seus aspectos.
*Filme assistido na cobertura do Festival Filmelier no Cinema, de 2023.