“RODAS E EIXOS” – O erotismo da transgressão [47 MICSP]
“Sem desviar os olhos de mim, ela pegou na gaveta um par de meias de seda brancas; sentou-se na cama e enfiou-as. O delírio de estar nua possuía-a: mais uma vez ela afastou as pernas e abriu-se; a nudez acre dos nossos dois corpos causava-nos o mesmo esgotamento do coração”. O excerto transcrito foi retirado de “Madame Edwarda”, subversiva obra de literatura erótica. Traduzir a literatura em linguagem cinematográfica nem sempre é fácil, menos ainda quando há um forte tom etéreo. RODAS E EIXOS não logra o êxito pretendido nessa tarefa.
Manami foi criada no seio de uma família de boa condição financeira e tradicional. Quando se encontra com homens que conhece em aplicativos de relacionamento, mesmo durante o sexo, a insatisfação predomina. Certo dia, sua amiga Irene a apresenta a Jun, um jovem gay e rico que as leva a uma casa noturna. Manami se interessa por Seiya, por quem Jun é apaixonado, o que, todavia, não abala a amizade dos dois. Depois de assistirem a uma peça erótica, os dois amigos decidem convidar Seiya para sexo a três; é o primeiro passo das mudanças em suas vidas.
“Rodas e eixos” é baseado em um livro escrito por Dan Osano e inspirado em outro já mencionado, “Madame Edwarda”, de Georges Bataille. A obra de Bataille é de difícil adaptação por uma série de motivos, como a não linearidade, a prosa com características poéticas e o erotismo subversivo que transita entre obsessão e sensações extremas. Diante disso, o roteirista (e também diretor) Jumpei Matsumoto encontra dificuldades em tornar palpável o conteúdo narrativo. A linha entre a sutileza e o vazio se torna tênue, o que é agravado quando, em seu desenvolvimento, o longa é conduzido à obviedade. Se Manami (Uri Suzuki) quer ser Madame Edwarda, ela precisa ser transgressora como Madame Edwarda.
Essa transgressão crescente de fato ocorre: no contexto da pandemia de covid, a “primeira” Manami (versão não transgressora) se preocupa em usar máscara em todos os locais e passar álcool em gel sempre que possível, hábitos flexibilizados pela “segunda”; da mesma forma, o cigarro era algo impensável para aquela, mas abraçado facilmente por esta. A protagonista não quer mais ser “certinha” a partir de um gatilho bastante específico, a peça a que assiste com Jun (Atomu Mizuishi). A sensualidade poética da performance na peça é deslumbrante, o erotismo adotado não é gratuito, dado que o filme é gráfico, não pornográfico (uma vagina aberta e um pênis ereto, ambos explícitos, estão dentro do contexto de suas cenas não puramente sexuais). A sexualidade é na realidade veículo para uma nova versão de si. Manami se interessa por Seiya (Masato Yano) não por se apaixonar ou por achá-lo irresistivelmente atraente, mas porque a aproxima de alguém que é interesse de seu amigo. Não se trata de fazer mal a Jun, mas de fazer diferente do que está acostumada (inclusive contratando um profissional do sexo).
A transgressão é progressiva e transformadora, porém incapaz de extirpar por completo o sofrimento decorrente da falsidade a que Manami sente estar sujeita. A bela Leitmotiv, um jazz elegante e melancólico, espelha a perenidade do sofrimento. O gozo pode surgir da rebeldia, contudo ele é, por natureza, efêmero. Aparentemente, Manami se considera uma fraude porque não faz o que quer, afinal, ela não é Deus como Madame Edwarda. Para a protagonista, o mundo não tem sentido e o caminho da salvação é se libertar das amarras sociais do puritanismo. Quanto mais autonomia ela ganha, entretanto, menos impactante é o filme, já que a ideia fica bastante clara não muito depois da peça assistida. O uso da razão de aspecto reduzida e mais tarde ampliada é um recurso formidável (usado, por exemplo, em “Mommy”), todavia a ambiguidade do desfecho o põe em xeque.
É interessante (ainda que não original) a maneira como Matsumoto utiliza o espelho inicialmente para contrapor personagens, depois para unir. Manami e Jun, em dois momentos distintos, são filmados por uma divisão espelhada: primeiro, é ela que está na imagem espelhada, ainda em um momento de timidez; depois, a situação se inverte. Mais adiante, o domínio de Manami é tamanho que ela transita de fora para dentro do espelho, mesclando o real e o surreal da diegese. Isso faz sentido se considerada a inspiração em Bataille, que também flerta com o surreal, mas é um dos raros momentos em que a linguagem cinematográfica empregada vai além do tradicional. Bataille foi subversivo, o mesmo não se pode dizer de Matsumoto, que, receoso de fugir demasiadamente do ordinário, recaiu em um meio-termo pouco memorável e nada criativo.
* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.