“ROCKETMAN” – Respeitável
Tina Turner, Ray Charles, Johnny Cash, Édith Piaf: várias são as cinebiografias de lendas da música cuja trajetória é um enorme clichê. O formato é sempre o mesmo, da trama musicada ao itinerário reciclado – descoberta, ascensão, crise (quase sempre relacionada ao uso de drogas) e redenção, nessa ordem. Exceções são raras, como “Amadeus” e “Não estou lá”, sobre Mozart e Bob Dylan. ROCKETMAN pode não ter conseguido variar muito esses moldes pré-concebidos, mas se destaca em alguns pormenores e representa uma ode respeitável a Elton John.
O longa retrata a transformação de Reginald Dwight em Elton John: o primeiro é um menino tímido desprezado pelo pai; o segundo, um ícone assombrado pelo passado não superado e que vive um presente sombrio, solitário e desolador. As mágoas foram ofuscadas pelo sucesso vivido nos anos 1970 e 1980, mas a proposta é expor o que ficou oculto através do que o tornou famoso, suas músicas.
Dexter Fletcher traz uma direção irregular. Algumas cenas são de arrepiar, como quando o protagonista cria a melodia para a letra de “Your song”. Ora naturalista, ora surrealista, o diretor acerta e erra nos dois lados: a sequência em que Bernie “abandona” Elton é pavorosa; a da piscina, belíssima. O uso das canções como fio condutor da narrativa, na prática, nem sempre dá certo. Em alguns momentos, o uso é intradiegético, literal e com função narrativa, em outros, extradiegético e metafórico, mas sem função narrativa – e assim por diante. Não há um padrão, de modo que algumas músicas fazem sentido na trama em si, enquanto outras estão lá apenas como adereços mal colocados.
No aspecto visual, novamente há uma irregularidade – a película consegue ir do oito ao oitenta. Por exemplo, enquanto os efeitos visuais são precários, os figurinos de Julian Day são magníficos. Os “trajes de palco” (expressão adotada por Elton) são extremamente fidedignos e expressam bem a persona que ele externava ao público, como alguém que exala alegria e empolgação (ainda que por dentro nem sempre ele estivesse assim). Os números musicais às vezes lembram clássicos da sétima arte, com muitas cores e bailarinos competentes, porém o exagero é prejudicial à trama.
Em outras palavras, algumas músicas estão em sequências belíssimas – por exemplo, quando o protagonista canta “The bitch is back”, com uma estética fosca de tudo o que está ao seu redor, contraposta ao seu brilho. Entretanto, em um dos números musicais, ele passa ilogicamente por um parque de diversões, exagero que pode tirar o espectador da narrativa, a despeito da elogiável filmagem em plano-sequência. No uso do surrealismo, Fletcher só não vai melhor pela limitação dos efeitos visuais (como quando Elton canta “Rocketman”). A subjetividade mental do protagonista está presente da sua infância (como ao se imaginar conduzindo uma orquestra) à idade adulta, com momentos verdadeiramente lindos – a cena em que canta “Crocodile rock” é esplendorosa.
A produção acerta ao não atenuar os erros de Elton John (o próprio prólogo é uma surpreendente explosão de verdades). Não é possível afirmar se tudo aquilo é verdade, mas claramente não houve um intento de mascarar ou abrandar os vícios do protagonista – ao contrário de “Bohemian rhapsody” (cuja crítica pode ser lida clicando aqui), “Rocketman” não é um filme family friendly porque a vida do biografado também não foi. O resultado é que o roteiro de Lee Hall, além de honesto com o espectador, fornece a Taron Egerton muito material para encarnar (não imitar) o biografado.
O texto de Hall fornece ao protagonista conflitos internos, como a carência afetiva, sem olvidar conflitos pessoais, em especial o relacionamento com o pai e com o empresário. A ideia governante é que o artista só sai do fundo do poço se supera suas próprias dores. No caso de Reginald Dwight, alguém insatisfeito em ser quem é (desde a infância), a auto-aceitação é passo indispensável para a redenção.
Embora pareça simples, Egerton faz um trabalho fenomenal ao confrontar Reginald e Elton dentro da mesma pessoa, isto é, enclausurando um garoto ferido dentro de um homem falsamente empolgado (a cena em que ele quase chora no banheiro ao se olhar no espelho é de uma sensibilidade tocante). Mesmo que não passasse por uma transformação física e mesmo que não cantasse e tocasse as canções, o trabalho interpretativo do ator é sublime. O elenco de apoio não decepciona: Jamie Bell vai muito bem como o irmão que Elton não teve; Richard Madden faz um vilão clichê não caricatural; e Bryce Dallas Howard é uma mãe frígida e desinteressada.
A despeito de escorregões inexplicáveis, “Rocketman” apresenta metáforas simplesmente maravilhosas, como a que pontua a narrativa do prólogo ao desfecho: Elton se desnuda, literal e simbolicamente, para se reconstruir após enfrentar seus demônios (e a roupa que ele usa não é à toa). Despudorado e alternando melancolia e diversão, o longa não tem receio de representar os fatos, mas abre espaço para poesias imagéticas encantadoras, embaladas por canções empolgantes. Algo digno de Elton John.
Em tempo: “Rocketman” é melhor que “Bohemian rhapsody”. Por exemplo, é mais fiel aos fatos. Além disso, Taron Egerton é melhor que Rami Malek (cada um no papel respectivo). Em comum, o envolvimento de Dexter Fletcher (assina a direção do primeiro e assumiu a direção do segundo após a saída de Bryan Singer) e toneladas de genialidade musical.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.