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“RETRATO DE UM CERTO ORIENTE” – Brasil miscigenado [48 MICSP]

Pautado nas diferenças, RETRATO DE UM CERTO ORIENTE contrapõe crenças, individualidades, passado e futuro e etnias para compor um Brasil miscigenado e diversificado. Embora tenha um ponto de foco bastante recortado, seu resultado é muito mais amplo do que aquele indicado pelo título – e talvez mais particular.

Em meados do século XX, com a iminência de uma guerra, os irmãos libaneses Emilie e Emir decidem migrar para o Brasil. Os dois são católicos, o que não impede Emilie, todavia, de se apaixonar por Omar, um comerciante muçulmano. Essa paixão entre os dois inicia então um perigoso conflito entre Emir e os dois amantes.

(© O2 Play / Divulgação)

Além das contraposições temáticas mencionadas, o diretor Marcelo Gomes elabora contraposições gráficas a partir dos enquadramentos. Enquanto Emir está enclausurado na cabine do navio, prevalecem planos fechados, ao passo que Emilie, ávida pela liberdade que será proporcionada pela nova vida, aparece em planos abertos. A clandestinidade de Emir deixa de existir no barco para Manaus, quando passam a ser opostos espaços compartilhados e poucos espaços privativos. Do ponto de vista da linguagem, Gomes demonstra considerável refinamento, por exemplo na utilização de câmera subjetiva (na fresta em que Emir vê Emilie junto de Omar e no plano fechado em que aquela observa os pelos do peito e os fios da barba deste) e na fotografia (razão de aspecto reduzida e uso de preto e branco quase integral).

Esse mesmo refinamento é percebido no design de som, um dos maiores destaques do longa, tanto pela trilha musical, em que se destacam ritmos árabes, quanto pelos ruídos. Enquanto no Líbano é o som do vento que chama a atenção, no Brasil, há uma riqueza concernente ao meio ambiente, perceptível pelo constante canto dos pássaros, o farfalhar das folhas e mesmo o ruído de formigas (o canto dos pássaros, aliás, serve de alegoria para a liberdade encontrada por Emilie no novo lar). A exuberância natural brasileira aparece também em planos abertos com intuito contemplativo, reforçando essa virtude brasileira. Ainda no design sonoro, há uma excelente cena em que, a partir dos ruídos intradiegéticos, ocorre uma transição entre o consumo de uma fruta e uma relação sexual.

Outra transição muito boa se dá na sobreposição, imagética e sonora, entre três crenças distintas, em uma cena que é o epítome do amálgama encontrado em solo brasileiro. Por outro lado, o roteiro escrito por Gomes, Maria Camargo e Gustavo Campos (baseado no livro de Milton Hatoum) é bastante superficial na exposição dessas diferentes crenças – indígena, muçulmana e católica – e em como elas reverberam na vida das personagens. Em que pese ao respeito demonstrado pelos indígenas, sua participação na narrativa é muito diminuta. Quanto à separação entre islamismo e catolicismo, ainda que isso seja a motivação expressada por Emir para ser contrário ao relacionamento entre sua irmã e Omar, é evidente que há mais motivos.

Em outras palavras, apesar de Emir afirmar que não quer que Emilie se relacione com Omar por ele ser muçulmano, fica bastante claro que essa discriminação é mero pretexto para seu ciúme (até porque ele não tem preconceito em relação ao que lhe beneficia). Emir (Zakaria Kaakour) é radical (e é com base nesse radicalismo é que tira Emilie do Líbano) e autoritário (vende a casa sem consultá-la), mas também deveras infantil. É o que se extrai do seu perfil franzino, dos grilhões emocionais relativos aos pais (que o deixam atado ao passado) e dos usos da palavra “mágica”. Como um avesso do irmão, Emilie (Wafa’a Celine Halawi) é mais adulta, busca a própria independência e se livra das amarras do passado para viver o futuro. Por outro lado, ela apresenta a mesma inexperiência, como na forma de agir diante do primeiro beijo de Omar (Charbel Kamel).

A intenção inicial de “Retrato de um certo oriente” é exibir a realidade dos imigrantes – o que explica cenas cuja linguagem é documental, inclusive saindo da diegese -, tendo como pano de fundo os povos originários e o conflito de religiões. É interessante que o filme crie uma combinação que reflete a maior idiossincrasia brasileira, que é a sua miscigenação. No entanto, o não desenvolvimento individual para depois articular os componentes desse Brasil miscigenado impedem que tal multiplicidade étnico-cultural seja efetivamente encantadora.

* Filme assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).