“RATCHED” – Derivado insuficiente
“Um estranho no ninho” é um clássico (clique aqui para ler a nossa crítica). A direção de Milos Forman, as performances de Jack Nicholson e Louise Fletcher e o roteiro calcado no embate entre Randall McMurphy e Mildred Ratched são algumas virtudes para justificar a afirmativa anterior. A força dramática do filme continua atual mesmo transcorridos mais de quarenta anos de lançamento, algo que se manifesta, por exemplo, na produção da série original Netflix RATCHED. Afinal, o interesse parece ser retomar a questão do indivíduo contra o meio.
Na obra de 1975, sobressaía a ideia da liberdade individual contra a opressão das normas sociais de instituições de controle. No seriado, a coerção vem de um ambiente histórico conservador, retrógrado e brutal que impede os personagens de ser quem gostariam. Essa proposta se sintoniza com a história da enfermeira Ratched, que procura emprego no Hospital Estadual de Lucia, local que recebe um novo paciente psiquiátrico: o assassino Edmund Tolleson.
Ryan Murphy e Evan Romansky são os showrunners de um projeto que divide seu conflito central em pelo menos três grandes núcleos. Aquele que é mais bem trabalhado envolve Mildred e Edmund, especialmente a relação entre eles. Ao situar a trama na década de 1940, a narrativa problematiza os debates acerca das origens da violência, sejam elas oriundas da distorção psicológica do indivíduo, sejam fruto da crueldade da sociedade – nesse sentido, as sequências de flashbacks da protagonista são bastante expressivas desse conflito, particularmente a forma como um show de marionetes remete às experiências traumáticas do passado. Apesar de trazer momentos de grande intensidade dramática, a interação entre os personagens se afasta do potencial do tema e investe em um arco de confronto e vingança menos marcante.
Se por um lado o desenvolvimento do roteiro desse núcleo poderia proporcionar mais, as atuações de Finn Wittrock e Sarah Paulson são evocativas dos impasses dos personagens. Ele traduz no olhar e na construção corporal a tensão advinda da imprevisibilidade do assassino, mesmo em instantes em que tenta experimentar sentimentos positivos. Ela tem a difícil missão de compor uma figura célebre, reconhecida pelo desempenho de Louise Fletcher e por características tão expressivas, além de interpretar alguém ainda em formação que não é exatamente a mesma pessoa vista no filme anos depois – logo, é um desafio colocar traços clássicos de sua personalidade, como a capacidade de mentir e manipular, e elementos originais que ela perderia no futuro, como a empatia com quem se importa.
Enquanto o segmento principal apresenta as maiores qualidades, os demais são caóticos em certa medida porque são tímidos ou se desenvolvem sem tanto contato com a ideia central. O conflito em torno da sexualidade da protagonista progride de modo previsível sem chamar atenção para si, embora Gwendolyn seja quem impulsione tais dúvidas em Mildred; e o embate entre o hospital (representado pelo Dr. Hannover e pela enfermeira-chefe Betsy) e o governo (simbolizado pelo governador George Wilburn) traz o dilema de depender da política para manter tratamentos médicos, mas repete as mesmas situações e questionamentos sem variações. Os dois arcos se justificam ao se relacionarem com a vontade do indivíduo (prazeres sexuais ou compromissos médicos) sendo frustrada por um meio hostil (o conservadorismo da época ou interesses eleitorais), porém aquele sobre um segredo guardado pelo médico e um plano de vingança desvia nossa atenção para algo dispensável.
Da mesma maneira que o roteiro não copia o enredo do filme de 1975, pois é uma história de origem, a proposta estética também é outra. Ao invés de criar um drama de viés sociológico, a série se assume como um suspense com traços de terror (vistos, por exemplo, nas cenas com algum “tratamento” desumano, como a lobotomia e a hidroterapia). Os diretores estabelecem essas sensações através de algumas técnicas como o split screen, o uso de cores primárias fortes e complementares (verde e vermelho), a trilha sonora de acordes dramáticos e a alta profundidade de campo para valorizar os espaços dentro do hospital. Entretanto, em muitas ocasiões fica a percepção de que o estilo é um chamariz vazio de efeitos sensoriais e pouca ligação com a jornada dos personagens e os temas levantados – nem como experiência sensorial autônoma a linguagem se justifica se falta unidade aos estímulos criados.
A ausência de uma unidade estilística para os recursos visuais e sonoros pode ser pensada também pela falta de harmonia na direção dos episódios. As técnicas citadas anteriormente estão lá, porém perdem intensidade, padrão e sentido narrativo à medida que a narrativa se desenrola e novos diretores imprimem sua marca sem estabelecer uma estrutura geral. Esse contraste se evidencia principalmente no estilo histriônico de Ryan Murphy, que cria uma mistura de tensão e melodrama exacerbadas, e na condução mais contida de Michael Uppendahl, Nelson Cragg, Jennifer Lynch, Daniel Minahan e Jessica Yu. São diferenças significativas a ponto de esvaziar possibilidades estéticas capazes de fortalecer o embate entre indivíduos e meio.
Trilhar a reimaginação da enfermeira Mildred Ratched proposta por showrunners, diretores, roteiristas e elenco não é simples. Primeiramente, porque podem vir dúvidas quanto à pertinência de revisitar aquele universo; em seguida, porque podem questionar até que ponto essa história de origens se sustenta por si própria e pode se articular ao filme de Milos Forman. Nesse sentido, a primeira temporada de “Ratched” não se afirma quando deve desenvolver sua ideia nem quando deve definir sua abordagem estética. E, para piorar ainda mais, o último episódio acumula decisões questionáveis para os rumos da trama, dos personagens e da narrativa em um nível tão descendente que o resultado final é insuficiente como derivado ou não.
Um resultado de todos os filmes que já viu.