“QUO VADIS, AIDA” – Um antifilme de guerra
De 1992 a 1995, Sérvia e Bósnia se envolveram em uma guerra resultante da fragmentação da antiga Iugoslávia e dos conflitos étnicos e religiosos da região. A animosidade entre povos, que lutavam pela soberania nacional e pelo próprio governo representativo, causou grande destruição material e milhares de mortos (entre 100 e 200 mil), além do genocídio da população muçulmana. Se esses eventos rendessem um filme, seria pertinente esperar que ele representaria tamanha brutalidade de forma direta. Porém, QUO VADIS, AIDA? dispensa as possibilidades e expectativas mais previsíveis.
Baseando-se em uma história real com algumas liberdades ficcionais, a produção segue Aida, uma tradutora que trabalha para uma equipe de manutenção da paz para a ONU. A cidade de Srebenica na Bósnia sofre com a guerra entre sérvios e bósnios, o que deixa a protagonista em uma situação bastante delicada: trabalhar para ajudar os cidadãos que querem entrar em um acampamento de proteção da ONU e ainda salvar o marido e os dois filhos. A cada hora que passa, ela se encontra cada vez mais em um dilema que decidir o que fazer para equilibrar seu trabalho e o cuidado com a família.
Em entrevistas, a diretora Jasmila Zbanic comentou que muitos filmes de guerra costumam glorificar a violência, apesar de possuírem críticas a tais eventos. Além de sustentar essa ideia, a cineasta cria uma narrativa que não fetichiza os momentos violentos ao direcionar a câmera para outra perspectiva do conflito, igualmente angustiante. Na abertura, há uma discussão entre autoridades de Srebenica e agentes das Nações Unidas sobre as medidas para evitar um ataque sérvio à cidade, capaz de mostrar que o centro da trama não seria o front de batalha. Adiante, a invasão ao local não é encenada buscando registrar cenas de feridos ou mortos, pois os enquadramentos captam os moradores em fuga ou aprisionados pelos invasores enquanto ruídos de tiros e explosões são ouvidos no extracampo – a única aparição mais explícita de uma vítima, apesar de breve, choca pelo que é e não por algum efeito estilizado.
No decorrer da trama, fica mais evidente que não é front de batalha que interessa a diretora, mas a condição dos refugiados como consequência da guerra. A locação principal é a base das Nações Unidas, onde seus funcionários tentam mediar os conflitos e evitar um desastre maior para a população local. Dentro dessa instalação, estão alguns cidadãos bósnios que conseguiram entrar e Ainda, que intermediava a comunicação entre os moradores e os soldados ou médicos estrangeiros. Fora dali, milhares de outras pessoas estão em campo aberto e expostos a novos ataques inimigos sendo impedidos de entrar porque teoricamente não caberiam todos no abrigo – inclusive, o marido, Nihad, e os filhos, Hamdija e Sejo, de Ainda estão nesse extenso grupo sob risco. A diferença entre as pessoas protegidas e inseguras ainda criam um impasse extra para a tradutora: como cumprir suas obrigações profissionais e manter sua família a salvo, ou seja, como conciliar os deveres da profissão e sua vida pessoal.
Poderia se esperar que a ONU ajudasse efetivamente a população a se proteger do exército sérvio, mas o roteiro da própria Jasmila Zbanic critica a atuação da instituição naquela conjuntura de exceção. Por um lado, os funcionários que estão em Srebenica estão isolados e dependentes dos recursos que vêm da sede oficial da Europa (como acontece com o apoio aéreo não enviado para prevenir a violência dos sérvios); por outro, os próprios agentes aparentam menos disposição para ajudar todos os moradores locais e se comportam com uma frieza burocrática típica de quem coloca as ordens e regras acima da humanidade e da empatia (em dado momento, colocar o nome na lista de quem sairia para determinada rota é uma tarefa impossível). Então, cabe a Aida se desdobrar para fazer muito mais do que seria seu papel, o que a câmera demonstra tão bem ao intercalar momentos íntimos da família em planos fechados e a multidão desconhecida em planos abertos.
A decisão de não glorificar não se perde da narrativa nem quando o exército sérvio invasor passa a ter mais tempo de tela. Na chegada à cidade, não há sequências de confronto ou assassinato, mas passagens em que se vê a fuga dos moradores e novamente o som de tiros no extracampo enquanto o general Mladic caminha entre tratores pelo território conquistado. A partir daí, os antagonistas se tornam uma ameaça mais concreta aos demais personagens em pelo menos dois exemplos significativos: a reunião com Mladic para negociar a partida segura dos civis para outras cidades e a vistoria dos soldados sérvios dentro do acampamento da ONU à procura de militares bósnios escondidos. Em ambas as ocasiões, a tensão é construída sem que haja um ato de agressão física direta porque a atuação dos atores que vivem esses militares, em especial Boris Isakovic, e a própria dinâmica das cenas já fazem a angústia transbordar diante do medo de figuras imprevisíveis sedentas pelo poder das armas.
Outra forma de encontrar pela realizadora para criar tensão é aprofundar cada vez mais a escala do desespero de Aida. Do princípio ao fim da narrativa, ela passa de uma dificuldade a outra praticamente sem descanso, tendo que convencer os agentes da ONU a socorrer a população fora da base, participar das traduções e das negociações com os sérvios, ajudar uma mulher grávida no parto dentro do acampamento e conduzir marido e filhos pelos locais mais seguros onde possam ficar. Nada mais evocativo, portanto, observar como a montagem segue a protagonista em diversos momentos correr um lado a outro em ritmo acelerado em busca de soluções para diferentes problemas. Quando, enfim, é organizada a retirada dos civis bósnios para outras áreas, a agonia de Aida para não se afastar da família ganha proporções mais dramáticas, que se expressam através da atuação de Jasna Djuricic rumo à fúria emocional e à frustração da impotência.
“Quo Vadis, Aida?” chega ao clímax consolidando a ideia de que um filme de guerra pode não glorificar a violência nem minimizá-la. O momento mais aflitivo apresenta o enquadramento rápido de uma arma e a sugestão do que acontece em um cômodo fechado, já que a câmera é direcionada para um trecho vazio da cidade atormentado pelos sons brutais da guerra, que vêm do extracampo (uma metáfora precisa para o fim cruel e precoce de muitas vidas naquele cenário). Após esse clímax, Jasmila Zbanic ainda confere novas camadas de significados à violência no epílogo ao mostrar uma Aida traumatizada e ferida emocionalmente com o que presenciou e com as dores de um passado que não passa. Como diz a tradução do título do filme – para onde vais, Aida? – agora que os sentimentos, as ausências, os vestígios e algumas pessoas remetem ao sofrimento de uma violência que pode não ter sido vista, porém certamente é sentida.
Um resultado de todos os filmes que já viu.