“QUEER” – Descartabilidade
Talvez QUEER seja o filme mais complexo de seu realizador. Conduzido do real ao surreal, o longa se inicia próximo a “Me chame pelo seu nome”, mas vai na direção de “Suspíria: a dança do medo”, ainda que tenha seus momentos ao estilo “Rivais” (sensual) e mesmo de “Até os ossos” (gore). O que começa com um enredo singelo ganha novas dimensões com diversas metáforas, quase descartando o que havia sido elaborado.
Lee é um estadunidense de meia-idade que, nos anos 1950, mora na Cidade do México e vive uma vida regada a álcool e exploração da própria sexualidade com jovens rapazes. Quando conhece Eugene, fica encantado e tem a esperança de enfim se conectar com alguém.
Luca Guadagnino é um diretor bastante regular: ainda que, em sua filmografia, possa haver uma oscilação estilística e, sobretudo, de gênero, seus filmes costumam ter um grau mínimo de qualidade, que é bem superior à maioria das produções que chegam aos cinemas. “Queer”, porém, talvez seja o seu filme mais fraco, dada a existência de certas lacunas que são preenchidas por peças que não parecem nelas se encaixar.
O cineasta é muito hábil no estabelecimento de um contexto no qual o protagonista se encontra (local e época, em especial). O design de produção é esplendoroso tanto do ponto de vista dessa contextualização quanto nos simbolismos agregados à obra, como o corredor vermelho do hotel (cuja cor tem significado óbvio). No aspecto sonoro, todavia, o filme falha: as composições originais são ótimas e coesas, mas New Order (“Leave me alone”), Prince (“Musicology”) e, principalmente, Nirvana (ainda mais “Come as you are”), por exemplo, têm a aptidão de tirar o espectador da atmosfera preestabelecida. Artistas famosos como esses e seus estilos recentes não guardam coerência alguma com o clima do México dos anos 1950; são escolhas infelizes que não harmonizam com a obra porque não reforçam o ambiente, tampouco o contrastam. O anacronismo, enfim, não funciona.
No papel principal está Daniel Craig, inquestionavelmente despido (até mesmo em sentido literal) da virilidade marcante de James Bond e incorporando uma masculinidade amalgamada com fragilidade. Quando Lee olha para Eugene da primeira vez, fica completamente hipnotizado, o deslumbre é imediato; quando considera que o conquistou, parece uma criança com um brinquedo novo. Pelo jovem, o protagonista se humilha e revela ao amigo Joe (Jason Schwartzman) ter medo de perguntar a Eugene se ele é gay (o que demonstra o quão frágil ele é). É uma atuação muito boa e destoa do que interpretou antes, mas não é grandiosa. Drew Starkey também é excelente como Eugene, traduzindo o quão enigmática a personagem consegue ser. É aqui que começam, contudo, as lacunas.
Não se sabe quem era Lee antes de adotar essa vida. Tampouco se sabe muito sobre Eugene, que, por exemplo, fala do próprio trabalho, mas não é revelado em que consiste. É verdade que o roteiro de Justin Kuritzkes (baseado no romance de William S. Burroughs) não precisaria fornecer o backstory de cada um, mas isso, além de enriquecer a trama, forneceria mais ferramentas para compreender a enxurrada de metáforas presentes no longa. O que se sabe é o que cada um deles deseja atualmente. Com base nisso, repentinamente, a drogadição se torna tema do filme, algo que não havia sido construído até então. “Queer” seria simplesmente sobre desejo? Nesse caso, o alucinógeno terceiro capítulo perderia o seu propósito: Lee não precisaria de tamanha empreitada para obter aqueles efeitos, bastaria prosseguir no sentido do segundo capítulo. Há uma disparidade entre as partes da obra que comprometem o todo, um verdadeiro abismo que dificulta a sua compreensão. Isso se agrava diante de outra falha narrativa, relativa à ausência de foreshadowing. A imprevisibilidade pode ser interessante, mas deve ser usada com moderação, sob pena de incorrer em aleatoriedade.
A questão não é que o interesse de Lee na planta deveria ser adiantado, pois isso já ocorre, o que deveria ser adiantado é o tom surreal que viria após nada menos que uma hora de um filme e uma construção, a esse respeito, decepcionante. Segregando as partes, elas são muito satisfatórias; conjuntamente, Guadagnino entrega uma quimera que deveria ser muito mais congruente consigo mesma. Quase metade de sua duração é descartada (para uma continuidade cujo nexo é superficial), assim como seu tom naturalista (reforçado, por exemplo, pela maneira como o sexo é filmado). A outra parte deixa em aberto diversas questões, sugerindo que Lee vive uma vida tóxica (o que é corroborado pelas aparições de centopeias e cobras, animais venenosos) porque direcionada à satisfação de prazeres, tendo em Eugene a única exceção que ele revê com saudosismo. Outra interpretação leva a crer que, enquanto o primeiro deseja uma fantasia feliz e plena (ao buscar a planta), o segundo rejeita essa felicidade (o que se denota da conversa com a Dra. Cotter, vivida por uma irreconhecível e igualmente incrível Lesley Manville). Surge então uma miríade de possibilidades interpretativas que revelam que, mesmo com problemas, “Queer” não é descartável.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.