Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“PULP FICTION – TEMPO DE VIOLÊNCIA” – A marca da ironia

Com um humor bastante peculiar, PULP FICTION – TEMPO DE VIOLÊNCIA é uma obra única, inesquecível e inigualável. Tendo criatividade e imprevisibilidade como premissas, o filme não se cansa de surpreender o espectador com ironias de sabor agridoce.

Dividida em três capítulos, a película é composta de narrativas que se entrelaçam e são protagonizadas por várias personagens. Em uma delas, um casal decide assaltar uma lanchonete; em outra, uma dupla de assassinos executa trabalhos para um gangster; em outra, a esposa do gangster procura sair do tédio; na última (não necessariamente em ordem cronológica), um boxeador arranja problemas graças a um relógio.

Cartaz de “Pulp fiction: tempo de violência

O que é mais marcante em “Pulp fiction” é seu humor sarcástico, debochado e sádico. As piadas podem não ser hilárias (por exemplo, a da massagem nos pés), mas são de uma comédia incomparável, muitas vezes até mesmo nonsense (como quando Yolanda diz que precisa ir ao banheiro e quando aparece a carteira de Jules). Se o espectador não ri intensamente (o que faria em uma boa comédia tradicional), certamente se diverte com o roteiro de Quentin Tarantino e Roger Avary.

Do ponto de vista temático, o fio condutor da narrativa é o submundo do crime, todavia, reitera-se, com um viés cômico deveras particular. Verticalmente, ainda, essa realidade tem uma abordagem claramente psicanalítica – por exemplo, quando Mia observa Vincent pela câmera (voyeurismo) e quando Lobo joga água gelada em Vincent e Jules (sadismo). Embora seja pesada a carga de violência, há um subtexto paradoxal de redenção, sugerindo que quase tudo pode ser apagado. De um lado, o id é o caminho da perdição (basta ver a sequência na loja de empréstimos); de outro, o superego aponta pela salvação (Vincent teve de se controlar com Mia).

Trata-se de um script precioso do ponto de vista macro (estruturalmente), mas também impecável na ótica micro – mais precisamente, nos diálogos. Por vezes, há naturalidade nas conversas das personagens: no encontro entre Mia e Vincent, ela permite que ele tome milkshake do mesmo canudo, reclamando, depois, de um silêncio incômodo (o que são falas plausíveis naquele contexto). Sendo um filme moldado em idiossincrasias, Jules é o portador de um discurso ímpar (como esquecer as frases ditas naquele apartamento!?), ao mesmo tempo em que discute banalidades com Vincent.

Na direção, Tarantino é igualmente irrepreensível. A montagem não usa recursos requintados, privilegiando a filmagem com diversos planos-sequência (no corredor do prédio onde Jules e Vincent entram, na lanchonete onde Mia e Vincent vão jantar, no prédio de Butch etc.) e enquadramentos precisos (quando Butch e Mia estão no banheiro, considerando que a câmera está fora, basta um movimento panorâmico para acompanhar a saída de Butch). Em algumas cenas, o uso de contreplongée aumenta a imersão do espectador, o que ocorre no plano em que Vincent e Jules abrem o porta-malas e na cena em que Vincent negocia com um traficante – nesta, inclusive, é interessante observar que o traficante aparece em duas partes do campo (seu corpo à esquerda e o rosto no espelho à direita, nos cantos inferiores), enquanto Vincent fica no meio, em um ângulo no qual o público parece ocultado acompanhando a conversa.

O design de produção de David Wasco pode parecer singelo, porém, quando exigido, é um dos diferenciais para enriquecer os planos. Como exemplo, basta citar a lanchonete do encontro (composta, dentre outros elementos, por imitações de famosos icônicos, mesas em carros e cartazes de filmes nas paredes) e a loja de empréstimos (onde se vê um trevo de três folhas, geralmente associado a nascimento, vida e morte, o que tem valor simbólico quando se analisa o desfecho da sequência). Da mesma forma, o figurino assinado por Betsy Heimann é significativo na medida em que coloca todos com roupas formais, salvo personagens periféricos (Jimmie e Lance estão no conforto de seus lares; o casal de ladrões está distante do profissionalismo da equipe de Marsellus); e todos com cores sóbrias e discretas, salvo Marsellus (o chefe é o único que se destaca). Quando Vincent e Jules colocam roupas diferentes, novamente o simbolismo é notório: depois de tudo por que passaram, seu perfil de criminosos é desconstruído (Vincent é humanizado e Jules abraça de vez a religião).

Embalado por uma trilha musical que atenua a violência gráfica (uso de drogas, assassinatos), o elenco é ótimo. Uma Thurman dá a Mia a dubiedade necessária à personagem (há um flerte, mas é velado); Tim Roth impressiona na franqueza pela qual Ringo se despe da bravura inicial; Samuel L. Jackson é talvez o melhor em cena, graças aos rompantes de Jules e sua personalidade aparentemente bipolar (em minutos, ele muda da simpatia para o homicídio), bem como às suas contradições (um assassino que cita um versículo bíblico mesmo sem ter motivação religiosa); John Travolta talvez seja o menos caricato (não que o tom caricatural dos demais seja ruim, é coerente com a proposta), envergonhando-se diante de Mia (olhando para baixo e dando um leve sorriso) e falando consigo mesmo no banheiro (cena que, inclusive, tem a dupla função de confirmar as suas ações e permitir que Mia fique sozinha).

Com o tempo, “Pulp fiction” passou de obra-prima da sétima arte a símbolo cultural. Entre memes (Vincent procurando Mia na casa), cenas icônicas (o concurso de twist) e falas memoráveis (“english, motherfucker!”), o longa, além de catapultar a carreira de Tarantino, extrapolou a esfera cinematográfica e passou a ser conhecido até mesmo por quem não assistiu a ele. Para um filme que brinca com o tempo cronológico, é uma ironia que o passar dos anos só o tenha melhorado – o que não surpreende, já que é essa a sua grande marca.