“PSICOSE” (1960) – Preciosa joia da história do cinema
Obs.: o filme aqui considerado é aquele lançado em 1960, dirigido por Alfred Hitchcock. Portanto, serão ignoradas as obras associadas, anteriores ou posteriores a essa produção.
Obs. 2: ao contrário das demais críticas, aqui poderão haver alguns spoilers sobre a trama, normalmente sem revelar algo substancial quanto ao desfecho. Para quem nunca viu o filme, duas dicas: assistir a ele (com urgência!) e depois ler esse texto.
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PSICOSE é certamente um dos maiores filmes da história do cinema. Para o American Film Institute, é o mais emocionante (2001) e tem o segundo maior vilão (2003), sendo ainda o décimo quarto maior filme estadunidense de todos os tempos (2007). Dirigido pelo imortal Alfred Hitchcock, é um verdadeiro ícone da sétima arte.
A película começa apresentando Marion Crane, secretária que se apropria indevidamente de quarenta mil dólares de seu chefe, com o objetivo de começar uma nova vida. Durante sua fuga, acaba se refugiando em um hotel um pouco escondido na estrada, onde encontra o singular Norman Bates, gerente do estabelecimento. O que Marion não sabe é o risco que corre ao decidir passar a noite no local.
O início é composto de um establishing shot para mostrar a cidade onde a história começa. A câmera então vai se aproximando até entrar no quarto onde está Marion, na intimidade com seu namorado secreto, Sam Loomis. Embora sugira um viés romântico à película (e talvez um triângulo amoroso quando surge Norman), “Psicose” está longe de ser um romance. Pelo contrário, o roteiro de Joseph Stefano é um suspense inigualável. Seu texto passa por incontáveis matérias: a relação entre dinheiro e felicidade (embora aquele não compre esta, ele suborna a infelicidade); o poder do acaso (presente no flagra do policial e na própria ida ao Bates Motel); e o voyeurismo (relativo a Norman). As ciências da psique são muito presentes, como no Complexo de Édipo de Norman. Em diversas passagens, ele mostra que a mãe é assunto sério para ele, afirmando também que “a melhor amiga de um rapaz é a própria mãe”.
Norman declara que sua mãe é tão inofensiva quanto as aves que ele empalhou, momento em que ele revela a taxidermia como hobby. As aves têm então um significado simbólico, constituindo também um easter egg da filmografia de Hitchcock. O simbolismo se refere à castração: para Norman, todas as pessoas estão presas nas suas próprias armadilhas, ou seja, ele quer se ver livre de algo (metaforicamente, criar asas e voar), mas não se permite, principalmente por não querer se afastar da mãe. A filmagem torna as aves aterrorizantes a partir de um plano em contraplongée, com a parte não iluminada do rosto aparecendo (o que indica a revelação de seu lado obscuro) e a luz por baixo das aves. O visual é bem intimidador. No quarto 1 do hotel aparecem quadros de aves – não por coincidência, o filme seguinte de Hitch foi “Os pássaros”, easter egg corroborado pelo sobrenome de Marion. A direção de arte da película é, pois, formidável.
Algumas cenas são bem significativas, como o plano em que a câmera foca no envelope e depois na mala de Marion – aliás, ela olha para o envelope algumas vezes, todavia seu superego não consegue se sobrepor ao seu id. São também vários os momentos de tensão, como a sequência em que o policial fica intrigado com a atitude suspeita de Marion. Quando a moça dirige com o novo carro, há um momento de subjetividade mental: é seu rosto que aparece, ouvindo-se, todavia, em narração voice over, como ela imagina os diálogos a seu respeito. No brilhante epílogo, a mesma técnica é usada, mas de maneira bem mais expressiva.
Na célebre cena do chuveiro, os cortes têm sentido diegético, mas também instrumental (isto é, cada corte físico é um corte na montagem), até mesmo para deixar a cena mais dinâmica. A vítima tem seu corpo desnudo escondido pelos ângulos da câmera e pela pouca profundidade de campo (ressaltando, todavia, o uso de lente de cinquenta milímetros, semelhante à visão humana). O sangue foi feito de chocolate, o que fica imperceptível em razão da filmagem em preto e branco – opção para reduzir os custos e para evitar que o filme ficasse excessivamente sangrento. O som reúne tanto gritos quanto ruídos (para os quais a edição de som usou melões penetrados por uma faca), além da música genial de Bernard Herrmann, que compôs a magnífica trilha sonora apenas por instrumentos de cordas. Nessa música, acompanhando o ritmo da cena, a altura é maior no momento com mais ação, sendo reduzida em seu encerramento – o mesmo ocorre com a velocidade. O momento como um todo é uma alegoria da limpeza pessoal através do banho. Já o sutiã é branco no início (indicando pureza), mudando para uma cor escura após o ato de corrupção.
Do ponto de vista narrativo, a cena é ousada por ter um plot twist enorme e surpreendente na metade do filme. Detalhista, Hitchcock dá um close no rosto da vítima, podendo ser associadas as gotas de água a um choro. Porém, o cineasta cometeu um erro no plano-detalhe do olho, pois a pupila deveria estar dilatada. De todo modo, sua obra foi transgressora e precisou enfrentar a rígida censura da época – afinal, reúne um homem sem camisa, uma mulher mostrando seu sutiã mais de uma vez (e quase mostrando mais) e um vaso sanitário dando descarga (foi o primeiro filme nos EUA a mostrar isso, pois essa pseudoescatologia era mal vista).
A escolha do elenco não poderia ser melhor: Janet Leigh imprime dubiedade à personagem, jamais olvidando sua frustração pessoal, que gerou um momento de fraqueza; Anthony Perkins dá um show como Norman Bates, conseguindo representar a fragilidade da personagem, tendo sido escolhido para facilitar a empatia do espectador (jovem, atraente, franzino e aparentando vulnerabilidade). Perkins se destaca especialmente em dois momentos: quando gagueja ao ser inquirido por Arbogast; e no epílogo, ao apenas movimentar sua cabeça e fazer eloquentes expressões faciais (até o movimento dos olhos é chamativo), auxiliadas por efeitos tênues que se mesclam ao seu rosto.
Ao final, a longa fala do psiquiatra pode ser encarada como uma falha, em razão do exagero explicativo. Porém, não é esse o caso, pois ele esclarece o relacionamento entre Norman e a mãe, deixando o roteiro sem pontas soltas, além de aclarar um tema pouco conhecido na época. Hitchcock tem em “Psicose” uma preciosa joia da história do cinema, um filme indispensável para qualquer cinéfilo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.