“PRISCILLA” – Sutilezas de pouco apelo [25 F. RIO]
Elvis Presley é uma referência obrigatória no universo musical que se expandiu para outras artes. O próprio músico interpretou papéis no cinema, como “Ele e as três noviças” e “Lindas encrencas: As garotas“. O legado artístico já foi abordado em documentários, como “Elvis é assim” e “Elvis on tour“, e em ficções, como “Elvis” de Baz Luhrmann. Nessas obras, o foco narrativo estava inteiramente no astro da música e menos em outros personagens ao seu redor. Levando em consideração tais lacunas, PRISCILLA se torna um drama biográfico interessado na perspectiva de Priscilla Presley, esposa do cantor entre 1967 e 1973. A partir de um trecho de sua vida, a narrativa contempla questões mais amplas sem a mesma expressividade já conhecida da diretora Sofia Coppola.
Tomando como base o livro “Elvis e eu” de autoria da própria Priscilla Presley e Sandra Harmon, a obra acompanha as memórias da ex-esposa do astro do rock enquanto teve um relacionamento com ele. Na adolescência Priscilla Beaulieu conheceu Elvis Presley em uma festa, em um período em que se tornava uma estrela meteórica. Os encontros se seguem e uma paixão se forma entre eles. No fim da década de 1960, a relação avança para um casamento turbulento baseado em comportamentos abusivos do homem e no impacto da fama em suas vidas.
Seria possível supor que a produção apresentaria um mundo de glamour e refinamento para os principais envolvidos. Porém, a narrativa deixa claro rapidamente que as relações estabelecidas passam pelo constrangimento e não podem ser romantizadas. Elvis e Priscilla são um casal que já nasce sob a demarcação de uma hierarquia pendente para o homem. Há pelo menos duas marcas de poder para ele: o status de autoridade resultante do serviço militar no Exército e a diferença de idade (ele tem 24 anos e ela 14 anos). Além disso, a escalação do elenco principal também contribui para a sensação imediata de que muitos aspectos seriam questionáveis nesse relacionamento. Cailee Spaeny interpreta Priscilla e Jacob Elordi vive Elvis, dois atores com diferença significativa de altura, uma característica que influencia na percepção sensorial de que o cantor exerce um controle sobre o namoro e, posteriormente, o casamento antes mesmo de algum diálogo ou evento da trama indique isso.
Entrar em um relacionamento assim gera consequências significativas. A diretora Sofia Coppola mostra a reviravolta na vida da protagonista a partir de uma abordagem que lembra muito as histórias coming of age, considerando as questões, dúvidas, medos e desejos de uma adolescente chegando à fase adulta. Por mais que os elementos deste arco de amadurecimento estejam presentes (os conflitos geracionais com os pais, o início da vida sexual, os questionamentos sobre seu lugar no mundo…), a narrativa faz este tipo de história ser combinado com as reflexões sobre o fato de estar sob os holofotes da mídia. Como uma jovem de 14 anos pode se concentrar em seus estudos após frequentar algumas festas em que conhece e interage com Elvis e outros nomes famosos do cenário musical? Como acreditar nas promessas românticas do cantor se ele está constantemente nas capas de jornais com outras mulheres? O olhar deslumbrado de Priscilla com aquele universo é compreensível, mas, ao mesmo tempo, coloca uma série de riscos a quem ainda está amadurecendo e formando sua própria identidade.
A princípio, faria sentido cogitar que o encantamento da adolescente não havia acontecido apenas em função do charme de Elvis. O mundo do qual o músico faz parte e alimenta pode ser atrativo graças à fama, ao status e a à riqueza que desperta, porém a encenação de Sofia Coppola se mantém sempre discreta em relação a esses aspectos. Excetuando o trabalho de cabelo e maquiagem, que auxilia na demonstração da passagem do tempo e as transformações atravessadas por Priscilla, os demais traços visuais daquele mundo são insossos. Em geral, a diretora já criou encenações sofisticadas em seus trabalhos anteriores, dando aos cenários e à mise-en-scène um princípio dramático expressivo que complementa a trama desenvolvida. Por exemplo, em “Maria Antonieta“, a França aristocrática do século XVIII é concebida com anacronismos que reforçam o estudo de personagem da rainha; e em, “Encontros e desencontros“, Tóquio é filmado como uma cidade cosmopolita de ritmo acelerado que contrasta com a solidão de Bob e Charlotte. “Priscilla” é uma exceção por não oferecer uma caracterização poderosa.
O desenvolvimento da relação entre Priscilla e Elvis evidencia outra perspectiva para o casal. As narrativas voltadas para o cantor não tratam de maneira direta os abusos praticados pelo homem e a experiência da mulher em um casamento que se sente solitária e violada em muitos aspectos. O roteiro escrito por Sofia Coppola coloca em progressão as formas de violência ocorridas, representando como pode ser uma relação abusiva na qual as mulheres perdem continuamente sua liberdade e sua possibilidade de expressar seus desejos. Inicialmente, as atitudes de Elvis podem parecer inofensivas, mas guardam um nível de controle e escalonam para dimensões mais graves. É assim que ele proíbe a esposa de visitá-lo nos sets de seus filmes, recusa relações sexuais, escolhe as roupas por ela, compra um revólver, agride verbalmente e a machuca fisicamente. A cineasta e roteirista dá maior complexidade à questão, evitando qualquer maniqueísmo por associar esses problemas a um machismo estrutural e aos excessos do mundo das celebridades.
Mesmo Sofia Coppola discutindo elementos adicionais do entorno que podem fazer parte da relação do casal, o tema do abuso é trabalhado de forma tão mediana quanto a construção visual do universo cênico. É difícil perceber uma visão específica da autora, como já foi possível em seus outros projetos. Em “Virgens suicidas“, o cotidiano comum e aparentemente confortável de famílias suburbanas é abalado pela sensação de desamparo, solidão e por transtornos psicológicos de um grupo de jovens. Em “Bling ring: A gangue de Hollywood“, as críticas sobre a superficialidade do mundo das estrelas hollywoodianas e de cidadãos privilegiados investigam os âmbitos emocionais desse perfil social. Mais recentemente, a diretora tem produzido obras que não trazem o mesmo olhar autoral, a mesma sensibilidade artística anterior. Um exemplo é “On the rocks“, uma comédia dramática filmada sem criatividade como se fosse algo feito por encomenda para cumprir um contrato no qual não se vê ligação com as preocupações artísticas da autora. A mesma impressão preenche a realização de seu novo filme.
“Priscilla” pode ter pontos que, isoladamente, são interessantes: o desenvolvimento de uma perspectiva diferente para um grande nome da música, a combinação de estilos distintos de trama e a representação de uma relação abusiva de forma cuidadosa. Ainda assim, não se vê tanto de Sofia Coppola nessa obra, embora existam momentos em que seria possível experimentar alguma ideia autoral da cineasta. É o caso da sequência final em que a canção apresentada tem o papel de alegorizar aquele desfecho específico. Trata-se de um recurso em sua filmografia, ou seja, não criar personagens que manifestem explicitamente o que sentem e seus conflitos porque isso feito pela relação com o ambiente ou pelas escolhas criativas da autora. Porém, as duas possibilidades estão ausentes aqui.
*Filme assistido durante a cobertura da 25ª edição do Festival do Rio (25th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.