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“PRISÃO NOS ANDES” – E o pós-ditadura?

Na América Latina, não são raros os filmes que abordam as ditaduras ocorridas entre as décadas de 1960 e 1990. Títulos como “No“, “Uma noite em 12 anos” e “Pra frente, Brasil” exemplificam como os cinemas chileno, uruguaio e brasileiro representaram as experiências autoritárias recentes de seus países enquanto ainda estavam em vigor. Ao mesmo tempo que faz parte desse cenário, PRISÃO NOS ANDES se distingue da maioria das obras por enfocar no que vem depois do fim da ditadura. A grande questão é decidir sobre quais elementos o foco deve estar.

Terminada a ditadura de Augusto Pinochet no Chile, iniciativas de responsabilização jurídica ocorreram e violadores de direitos humanos foram punidos. O filme retrata as penas aplicadas a cinco militares condenados a uma prisão aos pés da Cordilheira dos Andes. Apesar das condenações rigorosas, eles parecem estar de férias em um local com piscina, jardins, aviários e guardas a seus serviços. O ambiente privilegiado é colocado em risco quando um deles dá uma entrevista que gera grandes repercussões.

O recorte cronológico remete imediatamente a “Argentina, 1985” ao jogar luz sobre as ações tomadas pelo governo democrático chileno para lidar com os crimes contra a humanidade da ditadura anterior. Porém, se o filme argentino se concentra sobre as rupturas em relação ao passado recente, o chileno trata das continuidades em termos de mentalidade e condições materiais para uma elite autoritária, violenta e opressiva. Os generais vividos por Alejandro Trejo, Hugo Medina, Bastián Bodenhöfer, Mauricio Pesutic e Óscar Hernández mantêm o mesmo discurso para justificar as prisões arbitrárias, torturas e assassinatos no país: a sociedade estava em guerra, era necessário protegê-la dos terroristas e, no máximo, apenas alguns “castigos” foram impostos. Quando questionados a respeito do que seria o Chile a partir dali, demonstram preocupação com um contexto em que as Forças Armadas não sejam valorizadas, negros e homossexuais ganhem mais espaço e um governo de esquerda esteja no poder.

As relações que se estabelecem na prisão reforçam a ideia de que o rompimento com a ditadura não seria tão intenso. Os antigos torturadores recebem livros e outros objetos de seus advogados para continuarem com seus hobbies em astronomia, música clássica e aves. Eles tratam o diretor da prisão e os guardas como empregados à disposição de suas vontades e prazeres, tendo que satisfazer todas as necessidades de figuras ilustres para o país. Não são poucos os momentos em que a frase “Você sabe com quem está falando” é citada abertamente ou surge implícita nas dinâmicas entre os personagens. Logo, os generais ainda se veem como donos de uma autoridade que não pode ser contestada embora e a realidade seja totalmente diferente. Trata-se de uma postura que interfere, por exemplo, na maneira com que participam dos treinos físicos dos guardas e utilizam Navarrete como serviçal para os seus próprios interesses de manutenção dos privilégios.

Então, o personagem de Navarrete tem um papel importante na narrativa trabalhada pelo diretor Felipe Carmona. A princípio, ele seria o guarda mais influenciado pelos cinco militares, atuando nos serviços básicos do dia a dia para alimentação, medicação e outras tarefas similares. Naquela convivência, passa a ser uma tentativa de contato dos generais com o mundo exterior e as instituições de justiça para não perder suas benesses nem serem transferidos para um presídio comum. Nesse ponto, as interações poderiam evocar o período ditatorial na obrigação de subordinados respeitarem a hierarquia militar quaisquer que fossem as ordens e até em uma dimensão geracional de jovens terem que obedecer os mais velhos. Porém, Navarrete possui seu próprio arco narrativo que envolve as contradições entre seu cargo, sua sexualidade e uma violência reprimida, questões que não conseguem ser mais do que meros apêndices na trama geral e na composição do ator Andrew Bargsted. No fim das contas, a progressão dramática do guarda não se completa nem encontra um relação efetiva com o conflito central.

Felipe Carmona também tem dificuldade de definir o estilo da encenação. A maior parte dos eventos que giram em torno dos protagonistas é filmada dentro de uma estética realista através de planos sem tantos traços visuais estilizados. Em determinadas passagens, o cineasta utiliza uma iluminação mais expressiva que passa por uma concepção de realismo a partir de fontes de luz natural, como objetos de iluminação e as cores do anoitecer. Em outras cenas, o diretor de fotografia Mauro Veloso intensifica a estilização e preenche os quadros com planos menos tradicionais e cores quase fantasiosas. Alguns elogios podem ser feitos por parte do público em relação às escolhas da fotografia para essas sequências em que Navarrete vai a um show ou uma lembrança é narrada a partir do estilo do cinema mudo. Contudo, são comentários que abordam a beleza isolada de cada momento e não sua integração a uma ideia geral da encenação. Como cada opção visual contribui para a construção da trama é uma pergunta que o próprio filme parece hesitante de como responder sem parecer desconexo.

Prisão nos Andes” tem o mérito de direcionar o olhar para um cenário nem sempre contemplado para o cinema que representa a ditaduras latinoamericanas e propor reflexões. Dentre elas, podemos perceber que a obra questiona até que ponto a redemocratização significa a ruptura imediata com as práticas antidemocráticas anteriores. Além disso, pensa sobre os impactos que anos de autoritarismo podem deixar sobre as relações sociais e o futuro de um país. Felipe Carmona passeia por esses temas colocando em primeiro plano a mobilização da sociedade civil pela garantia dos direitos humanos e pressões pela responsabilização de crimes contra a humanidade. Para tanto, ele se debruça sobre a caracterização dos militares e enfrenta um dilema complexo. Como representá-los sem torná-los monstros fora da realidade histórica a que pertencem ou humanizá-los no nível da banalização das atrocidades cometidas? Este é mais um aspecto comprometido pela falta de um foco preciso, que termina com uma cena de refeição que enfraquece o que vinha sendo desenvolvido até então por conta da imagem de figuras inumanas desvinculadas de problemas sociais do passado e do presente.