“PRESENTE DE DEUS” – Tenirberdi [47 MICSP]
O retrato que PRESENTE DE DEUS faz de seu país, o Quirguistão, é de um país pobre, fortemente religioso, bastante humano e de lindas paisagens naturais. Independentemente do quão fidedigna é a visão, o longa tem uma trama bastante comum sobre a ternura da maternidade/paternidade.
O senhor Mambet é um idoso acamado e, segundo o médico que o visita, ele deve ter apenas um mês de vida restante. Na noite da visita, alguém deixa um bebê de seis meses na sua porta. Inicialmente, ele e sua esposa, Burulai, planejam entregá-lo às autoridades. Entretanto, ao saber da possibilidade de que ele seja submetido ao tráfico de órgãos, o casal decide criá-lo, o que muda suas vidas por completo.
A religiosidade é um traço forte no longa dirigido por Asel Zhuraeva. Seu roteiro, coescrito com Temir Birnazarov, faz menção expressa à “vontade de Deus” várias vezes, sendo esse um norte do qual o casal de idosos, enquanto referentes, extraem significado. Quando o médico é pessimista, Mambet aceita a sua situação “se for vontade de Deus”; quando aparece o bebê à sua porta, Burulai afirma ser um “sinal de Deus”. A senescência do casal, no começo encarada com certa passividade perante os outros, é ressignificada perante si mesmos. Se nos minutos iniciais eles destinam seus pertences pessoais vislumbrando a morte, quanto mais a narrativa progride, mais eles adquirem independência (apoiando-se um no outro) e veem a si mesmos como pais de uma criança que deles depende e dependerá no futuro. A beleza de “Presente de Deus” reside justamente nessa transformação.
O incidente incitante é a chegada do bebê, estimulada pela notícia do tráfico de órgãos, ou seja, do ponto de vista da narrativa, o texto é bastante tradicional. Mesmo que seja reconfortante assistir à ode que é o filme (dedicado pela diretora aos seus avós), emanando tamanho afeto, não há nele nada extraordinário. O progresso físico e psicológico do casal é mostrado na mise en scène com delicadeza, mas sem surpresas. Mambet aparece primeiro no sofá, depois anda vagarosamente de bengala, mais adiante consegue carregar compras e um berço de madeira etc. Com o novo morador da residência, o casal passa a sussurrar para não acordá-lo. O lar, imageticamente acolhedor a priori (o Quirguistão faz parte da chamada “Rota da Seda” e isso é bem representado pelos tapetes e pelos cobertores, a casa é modesta, mas o espaço reduzido aproxima as pessoas), torna-se ainda mais caloroso (o posicionamento da câmera muda para ficar a favor da luz, deixando o cenário mais claro). A trilha instrumental é bela e coerente, mas distante de memorável.
A sensação de afetuosidade é resultante da trama, em sentido macro, bem como das personagens, em sentido micro. Mambet, um pouco inseguro, depende de Burulai para tomar certas atitudes (como quando pergunta o que responder se a moça da loja perguntar por que estava comprando mingau). O outro lado da moeda é que, quando a situação exige, ele consegue ser sagaz de maneira meiga (como ao afirmar, desavergonhadamente, que a esposa deu à luz ao bebê ou ao questionar Erkin se ele o amamentaria). É um pouco frustrante o modo como o mistério por trás do bebê é negligenciado, o que, contudo, é compensado pelos interesses, escusos e legítimos (do ponto de vista legal) que o cercam. Nesse quesito, o policial é uma personagem interessante na medida em que seu dilema – a legalidade do ofício ou uma possível ética consequencialista – é deveras profundo, ainda que não aprofundado.
“Presente de Deus” é, como mencionado, uma homenagem da diretora aos seus avós, quiçá um presente. Diversamente de Ternirberdi, um presente humano, tal qual ele, um presente afável, contido e ciente da sua modéstia, sem a pretensão de transmitir mensagens mais amplas que a mais básica de todas, aquela que geralmente se aprende desde cedo. Trata-se da mensagem da imensurabilidade do amor parental, um amor que ressignifica, modifica, transforma, impulsiona e não encontra limites.
* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.