“PRESENÇA” – Derretimento acelerado
Nas décadas de 1970 e 1980, o maneirismo se revelou uma tendência artística autoconsciente que percebeu, como caminho criativo para uma saturação estética da época, a estilização do cinema moderno. Nomes como Brian de Palma e Dario Argento carregaram nas escolhas formais e criaram universos diegéticos coerentes com essa visão da linguagem fílmica. Na atualidade, parecem crescer os casos de realizadores e obra que se contentam em utilizar a técnica como mero truque ou jogada de marketing sem apelo para a construção dramática. Foi assim, por exemplo, com “1917” de Sam Mendes e com o recente PRESENÇA de Steven Soderbergh. Este, por sinal, enfraquece a própria ideia que tenta apresentar como grande mérito técnico.

O título em questão se deve à perspectiva adotada pela câmera. A família formada pelo casal Rebekah e Cris e pelos filhos Chloe e Tyler se mudam para uma casa nova após uma perda chocante traumatizar a jovem. A crise familiar, no entanto, envolve também o relacionamento entre os irmãos e a atitude da mãe em relação à filha. Tudo se intensifica quando eles percebem a existência de uma entidade invisível no local e de seu interesse estranho por Chloe. As dificuldades de adaptação e de superação dos traumas ganha um componente sobrenatural, filmado o tempo inteiro pelo ponto de vista do espírito.
Steven Soderbergh parece tão empolgado com o dispositivo que precisa evidenciá-lo a todo instante das formas mais exibicionistas possíveis. Na sequência inicial, longas tomadas seguem a perspectiva da entidade enquanto atravessa cômodos, sobe e desce escadas, observa o exterior pela janela e acompanha personagens em visita pela residência. Em um primeiro momento, pode até haver dúvidas se, de fato, trata-se do olhar sobrenatural imposto à narrativa ou se seria apenas o desejo do diretor de exibir um virtuosismo técnico em busca de elogios pelo que conseguiu realizar. Em cenas posteriores, a impressão se altera embora os efeitos continuem negativos. Parece que o esforço passa a ser o de transformar a encenação na mais excêntrica e diferente que puder, como se fosse sinônimo de qualidade autoral. Sendo assim, a abordagem da família apresenta um distanciamento frio, a angulação dos planos fica deformada pela lente grande angular, os planos sequência afetam pouco os conflitos dramáticos e o enquadramento dos personagens busca o recorte mais desconfortavelmente incomum.
Entretanto, não se pode ignorar que a opção pelo ponto de vista da câmera deve traduzir uma presença sobrenatural e, por conseguinte, a filiação do filme ao gênero terror. Logo, seria necessário refletir sobre a pertinência desse dispositivo para o desenvolvimento dos códigos do horror. Novamente, produz-se a sensação de que o protagonismo dado à entidade não passa de um recurso pseudoartístico no sentido de algo elevado, verdadeiramente qualificado e superior a outras produções. Evoca-se “Sombras da vida” de David Lowery por partilhar o olhar não usual que direciona a trama, embora este seja muito mais bem resolvido na integração entre dramaturgia e estética. E ainda remete à franquia “Atividade paranormal” em seus elementos problemáticos e em uma visão questionável para o gênero. As cenas que deveriam transmitir medo para Chloe não deixam de lado os clichês de objetos mudados de lugar de maneira inesperada e portas batidas sem a interferência de nada evidente. Além de absorver tais problemas na ambientação, confere uma pose elitista a si mesmo por tentar se diferenciar da franquia citada com as escolhas formais de um estereótipo de filme indie.
A visão da câmera centrada na personagem menos esperada se torna também um artifício decorativo que tenta ocultar os sérios problemas da dramaturgia. É difícil se envolver ou até conseguir acompanhar a dinâmica da família quando os diálogos são genéricos e artificiais, carregando simples frases banais de um cotidiano do qual pouco se sabe e que pouco acrescentam. A trama irá lidar com a predileção de Rebekah por Tyler em detrimento de Chloe? Ou com os desentendimentos do casal sobre a criação dos filhos? Ou ainda sobre um segredo dividido por Chris com um advogado por telefone? Não, tudo isso não passa de cenas vazias que não se configuram como subtramas e apenas parecem estar ali para aumentar a duração do filme. O trauma de Chloe provocado por trágicas perdas e sua relação com a entidade é o conflito central, porém a abordagem fria e distanciada de Steven Soderbergh impede qualquer interesse pela jovem e seus familiares. Algumas passagens em que Callina Liang e Chris Sullivan tentam dar humanidade à relação entre pai e filha quase proporcionam um vínculo emocional real. As tentativas frustradas imperam porque Lucy Liu e Eddy Maday completam o elenco com a mesma postura robótica que a câmera assume.
Se for feito um esforço para criar outras possibilidades para o olhar sobrenatural de uma presença desconhecida, alguns subtextos podem surgir. Existe um voyeurismo típico do cinema que se amplia com a escolha formal do diretor, uma vez que o princípio de assistir à obra na segurança de não poder ser confrontado de volta faz parte da arte e já foi muito discutido por teóricos e artistas. É possível se sentir um voyeur em situações íntimas que não deveriam ser observadas às escondidas quando os espectadores são colocados na posição do espírito, contemplando à distância uma crise emocional de Chris e uma cena de sexo de Chloe. Além disso, a coincidência entre o ponto de vista do público e da entidade poderia evocar o desejo da plateia de ajudar a protagonista em ocasiões de perigo, algo que, por vezes, acontece quando o auxílio vem com eventos sobrenaturais. Seria possível também brincar com as semelhanças entre as ações de personagens frios ou cautelosos emocionalmente e a aparição desse ser paranormal, como quando Chris empurra lentamente a porta do quarto da filha. Uma pena que tantas possibilidades sejam esforços extradiegéticos da audiência e nenhuma delas uma criação possibilitada pela narrativa.
Apesar de não ter uma duração extensa, “Presença” não consegue evitar que sua ideia dispositivo seja desgastada rapidamente. A técnica em si derrete como uma escolha que se revela arrogante e sem integração com uma história de trauma mal elaborado que caminha para uma resolução sobrenatural. O roteiro em si se restringe a uma dramaturgia engessada, na qual as conversas parecem não levar a lugar algum, os personagens se mantêm presos a uma lógica de desumanização e os conflitos dramáticos evocam pouco apelo junto ao público. O texto escrito por David Koepp dá a sensação, inclusive, de que a sabotagem ao próprio filme não pode se resumir a um adereço técnico vazio que cansa em pouco tempo. O roteirista faz com que o conceito seja instrumentalizado para narrar uma trama que se encerra com convenções baratas de reviravoltas surpreendentes, planos de um vilão explicados em mínimos detalhes sob um roupagem complexa e um final impactante para consequências ainda em aberto.
