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“PORTO PRÍNCIPE” – Colonialismo disfarçado

É um tanto inevitável que nos coloquemos no lugar de um outro a partir de perspectivas próprias. Na aproximação artística e reflexiva entre experiências, o processo exige uma série de cuidados, e deve resistir a uma relativização que ouse banalizar vivências únicas. PORTO PRÍNCIPE é desprovido de qualquer precaução, alienado de seus próprios objetivos na tentativa de confortar os privilegiados.

Sozinha após a morte do marido, Bertha passa os dias em seu grande casarão campestre, no interior de Florianópolis. Seu filho persiste em trazê-la para a cidade, e a visita algumas poucas vezes ao ano para indicar tudo que acredita estar de errado na vida da mãe. Pressionada, a senhora decide contratar um ajudante, e acaba conhecendo o haitiano Bastide, vindo de seu país natal em busca de melhores oportunidades. A amizade entre os nós coloca uma série de relações em choque.

Marcando a sua estreia na direção, Maria Emília de Azevedo se ancora em materiais de arquivo para ambientar as tragédias do Haiti. Ela parte de um encadeamento de terremotos como ponto de fissão, sugerindo um elo entre o fenômeno natural e as divisões intrínsecas à sociedade brasileira. Tem-se a ilustração da bagagem que justifica a vinda de Bastide (Diderot Senat), personagem cujas problemáticas são sugeridas como âncora da produção, mas são logo ofuscadas pelos dramas vivenciados por Bertha (Selma Egrei).

(© O2 Play Filmes / Divulgação)

O filme se centraliza em uma tentativa de alinhar os opostos dessa relação, pelo menos naturalizada em tela para tentar – sem sucesso – observar essa aproximação com algum frescor. Isso se deve a não inserção da protagonista em um arco tradicional de superação de diferenças, pelo menos não de maneira explícita. Não fosse essa a única higienização na forma de se abordar o racismo, haveria lugar para a beleza ambicionada pelo elo das duas personagens.

Nas mãos de Azevedo, entretanto, essa mesma passividade no enfrentamento dos assuntos mais espessos acaba contaminando o projeto como um todo. No que diz respeito ao avanço dramatúrgico, por exemplo, são quase inexistentes os núcleos não orbitados pela presença de Bertha. A introdução das ausências e auxílios que a perturbam em sua casa, por exemplo, pressupõem o desenvolvimento de Bastide.

O retorno ao material de arquivo é inserido de maneira artificial. Os documentos históricos se transformam em planos de cobertura, extraídos de sentido senão encarregados de uma mera função mecânica, naturalizando uma relação comercial entre autor e espectador que facilite a compreensão pelo último. Comparável ao recente “Green book“, obra muito criticada por um falso moralismo ao substituir o protagonismo das vítimas de racismo pelo “salvador branco”, a obra se apropria dessa máxima com bastante rigor.

Se a própria tônica dos conflitos retratados – e que se afloram, nas passagens mais violentas e diretas do filme, quando o laço entre Bastide e Bertha é interrompido – já se apresenta de forma diluída, a caracterização do personagem haitiano partilha do mesmo male. Ainda que, ao desfecho, seja possível vislumbrar de alguma complexidade, a simplificação de suas nuances, e especialmente a boa aceitação da parte de sua empregadora, constrói uma personagem de subordinação, que remete ao arquétipo do “Negro Mágico”. Alinhado ao protagonista branco, ele é destituído de maiores complexidades, emanando uma personalidade carismático e aparentemente “perfeita” – de um ultrapassado ponto de vista moral” -, como tentativa de compensação pelo histórico agressivo, colonial e historiográfico ao qual o mesmo foi submetido.

Seria injusto ignorar, por outro lado, a organicidade de cenas como as da escola, um dos poucos vislumbres de Bastide em essência, ainda que Azevedo pouco saiba amplificar a força da passagem através do uso de câmera. Questões parecidas se mostram presentes nas sequências noturnas, onde os poucos focos de luz não fazem jus às expressões e à dramaticidade dos atores, cujos rostos são mal iluminados.

Finalmente, é de se observar, também, como existe um grau auto reconhecimento das contradições apresentadas pelo longa. Em um determinado momento, Bertha tenta equiparar a história de sua família, imigrante alemã, às vivências de Bastide e seus familiares. A comparação absurda é depois contestada pelo último, que reconhece a incompatibilidade entre os dois relatos. Em confissões como essa, entretanto, o filme encontra mais fôlego para subordinar a personagem à narrativa dos grandes vencedores.

Feito para reconfortar uma elite que insiste em se espelhar em todos os contornos da arte, “Porto príncipe” se apropria de um discurso decolonial para reproduzir uma lógica de dominação. A banalização dos conflitos colocados em atrito neutraliza qualquer potencialidade crítica, reafirmando que nem todos possuem a sensibilidade necessária para tratar do “Outro”.