“PINÓQUIO” (2022*) – A delicadeza exagerada feita em madeira
* Esta crítica se refere ao filme “Pinóquio” lançado pela Netflix em 2022 e dirigido por Guillermo del Toro, não ao longa homônimo lançado pela Disney no mesmo ano e dirigido por Robert Zemeckis.
As animações mais marcantes costumam ser as hábeis em equilibrar as suas camadas mais profundas e seus traços mais superficiais. Capazes de alcançar crianças e adultos, não são poucas as narrativas desse formato que esgueiram temáticas complexas por detrás de embalagens aparentemente inofensivas, erguidas pela sagacidade em reconhecer que os desenhos animados não precisam estar restritos às primeiras. É com isso em mente, ou ao menos nas aparências, que a direção de del Toro dá aqui continuidade às discussões de sua filmografia, elegendo o notório PINÓQUIO (2022) como seu mais recente representante dos excluídos fortes o suficiente para se impor contra normas sociais injustamente impostas.
Assombrado pela perda de seu querido filho, Carlo, o habilidoso marceneiro Gepetto tenta contornar o fatídico acontecido através da construção de um menino feito em madeira. Quando forças inexplicáveis resolvem ouvir as súplicas do pai amargurado, vem à vida o destemido Pinóquio, que será forçado a enfrentar diversos desafios para se tornar um “menino de verdade”.
Ambientado na Itália fascista de Benito Mussolini – que é ingenuamente ridicularizado em uma das passagens mais contagiantes do longa -, não é difícil perceber como o mexicano Guillermo del Toro faz dessa a sua nova roupagem para questionar a natureza humana. Trazendo aquele que deve ser o design mais improvável de todas as versões já feitas do protagonista, aqui ele recria novamente o seu discurso sobre a simbologia de “monstros”, dissociando essência e aparência para associar espectador e protagonista em um mundo repleto de perigos.
A forma como Gepetto (David Bradley) se assusta com os formatos distorcidos e os andares tortos de sua criação, em seu primeiro encontro com a marionete, é um indicativo cômico bastante claro dessa relação, que contrapõe as ilustrações disciplinares eleitas pela propaganda extremista e os contornos rudimentares – mas livres desse controle exacerbado – assumidos pelas personagens escolhidas como expoentes de rebeldia.
Isso se junta muito bem à ingenuidade do olhar de Pinóquio (Gregory Mann), que o guia através de sua jornada de redescobrimento da pureza escondida por detrás dos ares fúnebres da guerra. É nesse sentido que o filme talvez encontre o seu maior mérito, ironicamente também a sua grande maldição – a forma como os assuntos de maior complexidade acabam sendo apenas pincelados.
Se por um lado isso confere mais força à aura infantil do projeto – e cujo refinado acabamento visual acaba incorporando esse senso, mostrando texturas que misturam a plasticidade de um desenho para crianças com cicatrizes e manchas, mas que não necessariamente são exploradas -, por outro, reduz o impacto que determinados destinos poderiam ter.
Isso se deve parcialmente ao fato de o filme se assumir como um musical, que alavanca a força de seu realismo fantástico – sempre presente na filmografia do cineasta mexicano, mas talvez aqui em sua forma mais inocente – , mas minimiza paralelos que se contentam em estar em um campo insuficientemente implícito. Dotadas de coreografias extremamente simples – e que não desenvolvem toda a liberdade linguística que o campo animado poderia proporcionar -, tais passagens poderiam alavancar o senso de comparação entre o boneco – dotado de uma energia própria que o afasta de cordões típicos de marionetes – e a população massificada, vítima cúmplice de muitas das tragédias da época.
Essa mesma falta de cuidado com alguns dos subtextos, ainda que por outro caminho acabem não didatizando um contexto já muito explorado pelas expressões artísticas, acaba recaindo pela trajetória não finalizada de algumas personagens, especialmente a que se refere ao interessante Candlewick (Finn Wolfhard). Filho de um líder militarista, a sua figura surge como um dos elos mais claros entre humanidade e aberração, limites que sempre se entrelaçaram nos universos míticos de del Toro.
Para além da demonstração da hereditariedade de certas características humanas, a forma como os dois jovens tentam honrar o legado moral de seus respectivos pais tem muito a dizer sobre as influências que exercemos sobre uns aos outros. Tal traço, se associado à própria razão de ser de Gepetto, mestre na criação de formas e contornos encantadores a partir da matéria bruta, bem conversa com o ideal das imagens que criamos para traduzir uns aos outros.
Embora esteja aqui presente nas acusações de bruxaria e demais ofensas dirigidas à Pinóquio pela população, igualmente persuadida a acreditar nos defensores de Mussolini, por exemplo, são esses debates que se anunciam mas não acabam finalizados da maneira que poderiam, sabotados pelo temor da direção em se desvencilhar de seu público mais imediato.
Seria injusto ignorar, todavia, a maneira como o filme esbanja uma grande paixão por seu próprio universo, conhecido há tempos, porém aqui bem reajustado a um novo contexto, e que mesmo demasiadamente doce ainda alavanca ótimos comentários sobre as leis do comportamento humano. Visualmente belo, tem-se assim em “Pinóquio” um reajuste que, mesmo não reconhecendo a totalidade de seu potencial, complexifica o seu protagonista sem desencantar uma nova geração.