“PIEDADE” – Gatilho exterior [21 F. Rio]
A fictícia cidade de Piedade, no litoral nordestino, é o retrato de um Brasil multifacetado: carrega o erotismo das paixões livres, abriga o ativismo social e político popular, possui belezas naturais sob o risco da degradação ecológica e desenvolve afetos entre familiares e amigos. Todos esses temas são despertados pelo que o elemento estranho àquela realidade pode desencadear, obrigando adaptações às novas condições. Contudo, PIEDADE levanta muitas questões que nem sempre são plenamente trabalhadas.
O ambiente nativo da história é a praia da Saudade, onde fica o bar Paraíso do Mar. O local é administrado pela viúva Carminha e pelo filho mais velho, Omar. O cotidiano da família é abalado pela chegada do executivo Aurélio, representando a empresa Petrogreen (que já vinha provocando consequências para a natureza local) e levando a oferta pela compra do terreno. O recém-chegado acaba por trazer à tona segredos há muito tempo escondidos, que conectam Carminha e seus parentes a Sandro, o dono do cinema pornô do outro lado da cidade.
As consequências da empresa petrolífera para o ecossistema são abordadas de forma esparsa, carecendo de uma articulação mais coesa com a estrutura dramática em geral. Há as referências contínuas aos tubarões na praia, por consequência das ações destrutivas da companhia em busca de empreendimentos imobiliários e outros serviços lucrativos; o uso desse animal como metáfora do empresário predador que explora os habitantes da região; a proibição do menino Ramsés de nadar na praia devido ao perigo de ataques de tubarão ser remediada pela experiência simulada em um aparelho dado a ele por Aurélio; e o plano final, que registra a transformação ocorrida com os personagens, exemplificada pelo caso de Ramsés, colocados em uma situação muito distinta de sua origem pelo capitalismo. O diretor Cláudio Assis e o fotógrafo Marcelo Derst destacam as passagens no mar e conferem ao meio uma estética, um ritmo e um colorido todo próprio, mas falta fazer o mesmo com a paisagem ao redor, por estar enquadrada tradicionalmente sem o lirismo necessário à proposta.
Dentro ainda da dimensão ambiental emerge o arco dos protestos sociais e políticos contra a Petrogreen. O filho de Sandro e seus amigos organizam ações de repúdio à empresa e de alerta à população, como se vê na segunda sequência do filme em que eles se gravam em alto mar. Além dos momentos serem poucos e não terem um desenvolvimento que traga conflitos e transformações aos personagens e ao tema, o personagem citado não tem uma jornada própria e funciona muito mais como um vetor para os outros: abre para o pai a possibilidade de redescobrir o passado e de encontrar sua família até então desconhecida – uma trajetória particular para ele, porém, fica faltando.
Na verdade, são o encontro entre Sandro, Omar e Fátima e a chance de conviver com Carminha os grandes méritos da obra. O percurso desses personagens revela intrigas familiares, segredos enterrados, a convivência simples com a natureza e as demonstrações de afeto por quem se ama e se preocupa, mesmo há muito afastados. Tudo isso graças a um Cauã Reymond inspirado em compor um sujeito aparentemente bem resolvido com o cinema pornô, mas que esconde uma carência emocional capaz de fazê-lo se aproximar de Aurélio; a um Irandhir Santos potente, magnético e feliz na criação de um homem resistente a injustiças e carinhoso na relação com o ambiente e com seus parentes; e a uma Fernanda Montenegro do alto de sua imponência para construir uma matriarca forte na gestão da casa e do bar, sem abandonar a sensibilidade liberada pela lembrança das dores do passado.
O entrelaçamento entre núcleos distintos para o desenvolvimento das questões familiares é realizado por outro gatilho, esse externo. Matheus Natchergaele encarna Aurélio como o executivo que faz tudo aquilo que for necessário para comprar o terreno desejado, desde o convencimento por um discurso bonito até o uso de segredos da família a seu favor. Até certo instante, a ambição do personagem e sua inusitada relação com Sandro conferem momentaneamente peso narrativo a ele, porém isso se esvai com o tempo quando os dilemas íntimos ocupam o centro das atenções. Apesar de tentar criar um conflito específico relacionado com sua mãe, não há uma vinculação com o resto da narrativa por tratar de outras problemáticas voltadas para as aparências que cultivamos e ocultamos.
Outro traço característico da filmografia de Cláudio Assis é a abordagem do sexo sem pudores, puritanismos ou juízos moralistas. O relacionamento casual entre Aurélio e Sandro assinala como o sexo para o primeiro é um instrumento de satisfação pessoal de prazer ou ambição econômica, enquanto para o segundo é uma maneira de vinculação emocional com outra pessoa. As relações sexuais também se evidenciam nos encontros ocasionais heterossexuais e homossexuais no cinema pornô, filmados com um filtro de luz vermelho intenso característico da sensualidade e com planos aéreos que descortinam aos poucos os múltiplos romances do lugar.
“Piedade” se desenvolve até o desfecho priorizando o que tem de melhor: o ótimo elenco e a ternura das relações de parentesco. Mesmo que a entrada de um gatilho externo sirva basicamente para liberar questões particulares dos personagens, ele igualmente abre espaço para muitos temas subaproveitados. Um duro desafio falar de família, interesses empresariais, especulação imobiliária, destruição ambiental e engajamento político assumido pelo filme e entregue com uma série de lacunas.
*Filme assistido durante a cobertura da 21ª edição do Festival do Rio (21th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.