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“PERLIMPS” e “BOCAINA” [24 F.Rio]

A animação tem múltiplas possibilidades para além do uso do 3D. A variedade de técnicas possíveis é exemplificada por PERLIMPS, novo trabalho do animador Alê Abreu. Na trama, Claé e Bruô são dois agentes secretos de reinos rivais que precisam superar suas diferenças para cumprir suas missões. A dupla deve encontrar os Perlimps, criaturas misteriosas capazes de encontrar um caminho de paz em tempos de guerra promovida pelos Gigantes, que podem devastar a floresta onde vivem. A união dos protagonistas os faz mergulhar em uma aventura que mistura humor, ação, fantasia e ficção científica.

(© Espaço filmes / Divulgação)

Mergulho é uma boa palavra para definir a experiência audiovisual proporcionada pelo filme. Alê Abreu combina a criação de personagens de traços livres feitos em 2D e 3D com a confecção artesanal dos cenários ao fundo pintados à mão, recursos que possibilitam uma imersão significativa no universo diegético. A construção de mundo é o maior mérito de uma animação que passeia por espaços mais ou menos abstratos, desde florestas que se assemelham a aquarelas pintadas com cores vívidas até ilhas flutuantes que potencializam o senso de imaginação da aventura. A princípio, Claé e Bruô estão em um bosque similar à realidade extrafílmica, apesar de ser esteticamente mais idealizado; no desenrolar da jornada, eles se deslocam por um conjunto de nuvens próximos a um terreno sólido e por um jardim no céu isolado de outros ambientes. Ao longo da missão, o espectador contempla um desbunde visual em diversas camadas sensoriais.

Da mesma maneira que seu projeto anterior fazia, o diretor cria uma narrativa que não se volta apenas para o público infantil. O senso comum apressado que considera que qualquer animação é voltada para as crianças ignora como esta pode ser uma técnica cinematográfica que se comunica com todos, em especial porque pode abordar diversos temas complexos. Em “O menino e o mundo“, Alê Abreu tratava da desigualdade social a partir da história de um menino em busca de seu pai. E em seu projeto mais recente, questões como desenvolvimento econômico predatório, necessidade de preservação ambiental e relações conflituosas entre dois povos são trabalhadas a partir de uma trama fantástica aparentemente localizada em um futuro próximo. Estes tópicos são percebidos imediatamente no embate que ocorreria entre os Gigantes e os Perlimps, mas também envolve as interações entre os dois protagonistas que pertenceriam a reinos rivais e seus próprios arcos narrativos.

Ao se aproximarem da conclusão de suas missões, Claé e Bruô se deparam com uma revelação profunda acerca das origens e das habilidades dos Perlimps. Nesse momento, o público aprecia algumas cenas que utilizam os efeitos visuais para simbolizar o salto de imaginação pelo qual eles passam para entender e sentir a força energética daquelas criaturas. E na própria resolução da missão, a dupla compreende o poder da empatia ao tomarem consciência de quem eles realmente são quando o nível da ameaça atinge o clímax. Simultaneamente, o espectador experimenta uma viagem sensorial garantida pelos estímulos visuais que servem para representar a disposição de conhecer e aceitar o diferente. Sendo assim, “Perlimps” articula a experiência visual de uma animação pautada em uma estética de aquarela com discussões dramáticas que incorporam um discurso pacifista e ecológico sem ser panfletário. Isso porque Alê Abreu cria uma proposta sensorial que encanta pela beleza plástica e pela progressão dramática.

(© Festival do Rio / Divulgação)

BOCAINA é outro filme que se estrutura em torno de uma ambientação específica. A experiência imersiva em questão busca representar o que pode ter sido o período de confinamento e de isolamento social suscitado pela pandemia do coronavírus. O título da obra faz referência a uma região em Minas Gerais, onde as irmãs Zulma e Musk vivem isoladas até a chegada de um forasteiro misterioso. Josevelt é um sujeito que chega doente ao local e que modifica a rotina diária das duas mulheres. A partir daí, os três passam por uma série de vivências que remetem à fazenda afastada onde estão ou se aproximam de situações nunca antes vistas por aquelas pessoas.

A proposta de imersão exige certos desafios para o público por conta das escolhas formais incomuns dos diretores Fellipe Barbosa, Ana Flavia Cavalcanti e Malu Galli. As duas mulheres, que também são atrizes no filme, interpretam irmãs que passam seu cotidiano comum em absoluto silêncio sem conversarem entre si ou com o recém-chegado tempos depois. As interações entre os três indivíduos ocorrem através de um trabalho corporal que evidencia as emoções sentidas nas expressões faciais e também na dinâmica interpessoal, permitindo assim perceber instantes de diversão com risadas, de angústia com lágrimas e de conflitos com desentendimentos entre as irmãs. Por mais distanciador que posas ser uma mise-en-scène baseada na ausência de diálogos, é possível acompanhar as variações nas vidas dos personagens e, quando algo ainda se impor como uma dúvida aparentemente insolúvel, algumas canções fornecem mais algumas chaves de assimilação. É o caso emblemático da sequência em que a música “Eu bebo sim” de Elizeth Cardoso é colocada para ouvir enquanto os três tentam se entregar à bebida e à dança.

Esta ambientação se relaciona de formas menos comuns com a experiência da pandemia. A crise sanitária e suas consequências influenciaram o cinema a produzir obras que abordavam os impactos sociais das novas tecnologias de comunicação e o confinamento em espaços pequenos, porém quase sempre em uma perspectiva urbana. O que pode ter sido a pandemia nas áreas rurais mais afastadas? Esta questão parece mover os realizadores, interessados em registrar com improvisos e cenas mais espontâneas o período de isolamento forçado pelo coronavírus. Desse modo, podemos refletir como a convivência de algumas pessoas após certo período de tempo pode eliminar a necessidade de diálogos para se entenderem, a vida no campo se baseia em outro tipo de temporalidade atravessada pela subjetividade e como alguns sinais indicam a presença do vírus da COVID-19. Neste último aspecto, a doença contraída por Musk e Josevelt que provoca tosse, grande mal-estar e outros sintomas mais graves e a ansiedade decorrente da apreensão com o futuro registrada no acesso a meios tecnológicos, como celular e laptop.

Tratar a experiência da pandemia no campo também faz com que a imersão cinematográfica explore traços do contato com a natureza. Grande parte dos acontecimentos retrata a rotina das áreas rurais: acordar cedo, recolher lenha, fazer café, cuidar dos animais, trabalhar a roça, almoçar, entre outros afazeres. Além disso, a fauna e demais elementos naturais assumem importância considerável no desenrolar da história e nos arcos narrativos dos personagens, como se pode observar nos momentos expressivos em que as irmãs tomam banho no rio, Zulma fica presa na lama, as galinhas saem e depois voltam para o galinheiro e um cão pega o osso da galinha do prato de Josevelt. Ainda que algumas decisões estilísticas não sejam tão expressivas quanto outras (principalmente as sequências que deixam seus sentidos mais alegóricos), “Bocaina” cria uma experiência espectatorial singular que ajuda o público a repensar suas próprias vivências recentes e relações com o cinema.

*Filmes assistidos durante a cobertura da 24ª edição do Festival do Rio (24th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).