“PARI” – O poder da surpresa [44 MICSP]
“Chega de vinho. Estou sedenta pelo meu próprio sangue”. Considerando a trama de PARI, essa frase inicial provavelmente seria uma metáfora para a busca da protagonista, que quer reencontrar seu filho (seu próprio sangue). Não é esse, necessariamente, o caso: o filme tem camadas muito além das aparências.
Pari e Farrokh viajam para visitar seu filho, Babak, que saiu do Irã para estudar na Grécia. É a primeira viagem para o exterior do casal muçulmano, que não fala grego – apenas Pari fala um pouco de inglês. Eles combinam com Babak de encontrá-lo no aeroporto; chegando lá, todavia, ele não está. Após diversas buscas, concluem que o filho está desaparecido. Retornar ao Irã parece a única saída viável, mas não para a incansável Pari, que está disposta a andar a Grécia inteira para encontrar Babak. O que ela não sabe é que o que pode encontrar diz mais sobre si do que sobre o filho.
Escrito e dirigido por Siamak Etemadi, “Pari” constitui-se em uma trama de mistério com momentos de ação e considerável profundidade. Há um subtexto enigmático em diversas passagens, que admitem interpretações variadas (“chega de vinho pra mim” significa abandonar a diversão? Encontrar o demônio seria um autodescobrimento?). O mistério se inicia nos primeiros minutos: por que Babak não foi receber seus pais no aeroporto? Considerando que eles teriam saído do Irã apenas para visitá-lo, e tendo em vista que não conseguiriam se comunicar direito na Grécia, seria necessário um motivo muito forte para deixá-los lá sem resposta. O mais interessante, todavia, é que o mistério inicial se amplia à medida que o casal procura por Babak, o que torna a trama progressivamente instigante.
Perspicaz, a narrativa vai desatando alguns nós e revelando outros através das impensáveis aventuras pelas quais Pari precisa passar. Na cena envolvendo a polícia na rua, por exemplo, certamente seria desesperador para qualquer mulher como ela (que no aeroporto não consegue olhar nos olhos do policial que faz a abordagem, que morde o hijab constantemente etc.) afastar-se do marido. É nesse contexto que surge um indício relativo ao verdadeiro tema da película: Pari não é uma muçulmana passiva como sua conduta inicial faz parecer. É certo, ainda, que nem ela tem conhecimento da própria coragem. A mulher que aceita ficar no aeroporto até à noite não é a mesma que enfrenta Farrokh ao declarar “que se dane a honra”.
Melika Foroutan incorpora Pari com energia sublime, transmitindo com maestria o desespero que cresce na mesma medida em que cresce a bravura necessária para encontrar Babak. Se Farrokh (Shahbaz Noshir, ótimo) se preocupa com a honra, Pari se preocupa com a integridade do filho – e nada mais. Não importa o pavor que os outros tentam imputar nela, é irrelevante a aparente desistência do próprio marido. Sua confiança em Babak é quase tão inabalável quanto sua determinação. Ela atravessa o fogo, literal e metaforicamente, se necessário for. Há ainda um excelente trabalho de caracterização da personagem, que, aos poucos, vai mostrando melhor seu rosto, suas linhas da face (que revelam que está magra) e a ausência de maquiagem (dando uma aparência de cansaço e fragilidade).
O design de produção é muito bom, enfocando em uma Grécia completamente distinta da arquitetura clássica que poderia se esperar. O país é repleto de ruas escuras, que parecem abandonadas, além de paredes pichadas. São locais ermos e assustadores para provavelmente qualquer pessoa que tenha vivido sempre no Irã. Em condições normais, Pari teria fugido do show de rock. Pensando em Babak, ela abstrai tudo o que está à sua volta, seja o sexo com o marido (a atriz deixa claro que a personagem está distante, em pensamento, na cena), seja a conduta surpreendente de Zoe (Sofia Kokkali, também formidável).
O visual intimidador serve de pretexto para rimas visuais, como o cachorro (figurando como a incógnita com a qual a protagonista se defronta) e o skatista da praça (que se frustra tanto quanto ela, cada um no que se propõe, é claro). A fotografia escurecida usa a luz vermelha para simbolizar o amor de Pari (como ao ler as anotações de Babak à noite) e a luz amarela para identificar o perigo.
Na direção, Etemadi é hábil para transmitir sensações, como na sequência com a polícia na rua (usando a câmera na mão para estimular a tensão e sugerir instabilidade) e na que Pari parece ficar tonta na praça (o que se denota das imagens desfocadas). O cineasta não exagera na trilha musical, ao revés, escolhe o silêncio quando parece mais adequado (na cena após a “heaven”), ou sons diegéticos do fora de campo (um helicóptero) para incrementar a cena.
“Pari” não é, contudo, um filme perfeito. Para exemplificar, o roteiro tem inconsistências, como o tempo de sumiço de Babak e a cabana que magicamente aparece no caminho da protagonista. Porém, o filme tem seu valor principal ao demonstrar que uma jornada pode desembocar em canais completamente inesperados, percorrendo caminhos muitas vezes tão importantes quanto o destino final. É o poder da surpresa.
* Filme assistido durante a cobertura da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.