“PARA ONDE VOAM AS FEITICEIRAS” – Intervenção identitária e estética [9º ODC]
Observar a sociedade ao nosso redor é perceber a heteronormatividade branca colonizadora imposta à força. Examinar a maioria das narrativas audiovisuais é constatar a predominância opressiva da subjetividade dos setores dominantes. A despeito das desigualdades de espaços e oportunidades, a arte e a sociedade também podem ser libertadoras no sentido de serem apropriadas por grupos e indivíduos minorizados. Tais experiências são criadas, recriadas, extravasadas e sentidas em cada segundo de PARA ONDE VOAM AS FEITICEIRAS.
Sob comando de Eliana e Carla Caffé e Beto Amaral, o documentário gira em torno de um grupo de performers LGBTQIA+ que realiza manifestações artísticas nas ruas do centro de São Paulo. Os artistas encenam performances que levantam debates sobre desigualdade social, preconceito e questões de gênero, incorporando tudo que esteja no entorno. As lutas cotidianas por igualdade, liberdade e afirmação pessoal rendem discussões com qualquer transeunte interessado em novas visões de mundo.
É fascinante notar como os performers não se limitam a aceitar um lugar social à parte, como se fosse desviado de uma suposta “normalidade”. Cada um deles está em sua jornada para ocupar a capital paulista e ter direito sobre ela, o que permite aos diretores filmar o cenário como um organismo vivo que vibra em seu próprio ritmo pulsante. Trata-se de algo intenso tanto pelo que se vê quanto pelo modo como se vê: o fluxo ininterrupto de pessoas atravessando as ruas em meio aos múltiplos ruídos de veículos e indivíduos é captado por uma câmera livre que registra movimentos, sons, rostos, corpos, olhares e ações. Nesse sentido, os enquadramentos parecem ser feitos espontaneamente a partir da atração de algum elemento e as variações de planos seguem as transformações de cenas do cotidiano.
Da mesma forma que o ambiente transborda vida e flexibilidade, o mesmo ocorre com os personagens fora do binarismo de homens ou mulheres. Além de integrarem coletivos mais amplos que os sujeitos por si só (movimento negro, trabalhadores sem teto e comunidade não heterossexual), também passam por questionamentos pessoais para respeitar outras lutas identitárias e construir alianças possíveis contra os extremismos e intolerâncias. O debate de ideias é poderoso ao trazer à tona questões como o genocídio de populações minorizadas, leituras discriminatórias de mundo, formas de violência cotidianas e manifestações de preconceito variadas. Além disso, ele é representado de maneira metalinguística através de diálogos dos artistas acerca das escolhas estilísticas do filme, com o efeito de iluminar os posicionamentos dos realizadores sem medos.
Além das rodas de conversa, os artistas também evidenciam suas lutas e identidades por meio das apresentações artísticas. Esses homens, mulheres e indivíduos não binários se apropriam da rua para cantar, dançar, declamar, enfim, manifestar suas subjetividades sem receios – assim, vozes de mulheres, negros, travestis e pessoas trans afirmam seu valor e conquistam seu lugar, apesar dos olhares reprovadores e dos comentários preconceituosos do entorno captados pela câmera. Ademais, a narrativa encena criativamente os mecanismos visuais reafirmar as demandas de cada grupo: há momentos de performance musical e dramatúrgica; monólogos com quebra da quarta parede e relatos de experiências íntimas; e mudanças na razão de aspecto ao longo do desfile de imagens sobre diferentes movimentos sociais.
Contudo, existem outras narrativas a serem contadas que não pertencem aos personagens centrais. Em especial, é a perspectiva dos povos originários do Brasil que precisa ser potencializada para valorizar suas tradições e suas visões da História, além de combater injustiças históricas desde a chegada do colonizador português. Esse processo acontece a partir da integração expressiva dos indígenas ao cenário, quando marcam seu lugar em um trecho da cidade e cantam suas músicas ritualísticas enquanto a rotina de São Paulo transcorre – é simultaneamente a intervenção identitária de um grupo que merece estar ali e a intervenção estética de uma equipe artística que marca graficamente o espaço destinado às filmagens.
Junto às dimensões social e criativa do conceito de intervenção, igualmente há a apropriação urbana daquelas sequências. Por se tratar de uma trama mais livre, construída com base em um roteiro rico de possibilidades, as cenas são criadas com margem para improviso. Por conta dessa ideia fundante, a produção permite a inserção de transeuntes diversos na história, fossem eles sintonizados com os valores progressistas das apresentações (em termos de identidades de gênero e de igualdade racial ou até da situação dos moradores de rua) ou intolerantes com o diferente a ponto de reagirem agressivamente por simplesmente dividirem o mesmo ambiente. Esses novos personagens chegam e aparecem em tela de surpresa com a naturalidade dos fluxos que atravessam a cidade e de uma câmera que pode enquadrar detalhes daqueles corpos sem a obrigação de compor planos perfeitamente simétricos.
Por mais que “Para onde voam as feiticeiras” tenha pouco menos de uma hora e meia de duração, a profundidade alcançada faz reverberar os efeitos dessa experiência intelectual e sensorial. Isso porque acompanhamos demonstrações precisas da metalinguagem, através de debates de como organizar as filmagens, alterações no formato das imagens e no estilo dos enquadramentos e da exposição dos equipamentos de captação do som, que sempre se justificam. Essa escolha transparece evidentemente a não neutralidade do cinema como um veículo de manifestação de ideias e sensibilidades específicas. Neste caso em questão, é a expressão audiovisual de que grupos marginalizados intervêm sobre o espaço público para afirmarem seus direitos, historicamente negados, de serem corpos livres.
* Filme assistido durante a cobertura da 9ª edição do Olhar de Cinema de Curitiba (9th Curitiba Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.