“PAPILLON” (1973) – Punir e vigiar
“A economia das ilegalidades se reestruturou com o desenvolvimento da sociedade capitalista”, disse Michel Foucault em seu clássico literário “Vigiar e punir”. No clássico cinematográfico PAPILLON, a relação entre a sociedade capitalista e o controle das massas é bastante clara: Ao invés de recuperar os criminosos, melhor mandá-los para a morte em uma ilha distante – não uma morte direta, mas uma morte lenta, após muitos anos dos mais variados tipos de trabalhos forçados. A liberdade já não mais faz parte do horizonte concreto dos delinquentes, que, contudo, almejam atingi-la mesmo se necessário arriscar suas próprias vidas.
É assim com Papillon, protagonista do longa homônimo que, na década de 1930, condenado à prisão perpétua na Guiana Francesa, se une ao também condenado Louis Dega para fugir do local. Os dois são muito diferentes: o primeiro é um homem grande e forte; o segundo, baixo e frágil. Steve McQueen é ótimo como um protagonista aparentemente grosseiro, mas fiel aos seus princípios e aos seus amigos. Valoroso, Papillon é um herói mesmo sendo, em tese, criminoso – seu backstory é propositadamente ocultado do público, que fica em dúvida se ele é inocente como afirma. Persistente, o sonho da liberdade, cada vez mais uma utopia, jamais é abandonado. No viés dramático, trata-se de um dos melhores papéis da carreira de McQueen. Ao seu lado está Dustin Hoffman, à época ainda não consagrado com “Kramer vs. Kramer” nem “Rain man”, mas já bem conhecido por “A primeira noite de um homem” e “Sob o domínio do medo”. Na caracterização, o corpo franzino do ator, aliado aos óculos de lentes grossas, torna a imagem de Dega como alguém vulnerável e propenso às intempéries a serem enfrentadas no sofrimento da sanção a que foi submetido.
Por outro lado, Dega tem algo que Papillon não tem (tampouco os demais condenados), mas que é do interesse de todos que estão na ilha (dos leprosos aos oficiais): dinheiro. Se foi o capitalismo que criou tal sistema de exclusão social – já que se partia da premissa da irrecuperabilidade do criminoso, o que implicava automaticamente sua dispensabilidade perante a sociedade -, o novo subsistema sancionatório (a prisão-ilha) também reproduz o modelo capitalista. Isto é, um é criador, o outro, criatura. Contudo, ao mesmo tempo em que o dinheiro de Dega pode facilitar a fuga, não é capaz de resolver tudo e, principalmente, escancara a corruptibilidade humana. Ironicamente, nem mesmo o capital é garantia de sucesso para a fuga, de modo que, mais de uma vez, o texto deixa claro que os valores humanos são preponderantes. Considerando que um dos roteiristas do longa foi Dalton Trumbo (além de Lorenzo Semple Jr.), cuja orientação ideológica já era, à época, bem conhecida, a crítica oblíqua ao capitalismo faz todo o sentido.
Trumbo e Semple Jr. adaptaram o livro homônimo e autobiográfico de Henri Charrière, cujo resultado é um roteiro cuja única falha reside no terço final, quando se torna cansativo e um pouco enfadonho, logo quando deveria empolgar. Entretanto, há sutilezas muito inteligentes no texto, podendo-se citar, por exemplo, esta emblemática frase dirigida aos condenados: “obedeçam e sofrerão menos que merecem”. O grau de sinceridade é assustador: eles estão lá para sofrer e porque merecem sofrer, todavia poderão sofrer menos do que efetivamente merecem enquanto obedecerem aos oficiais. Outro subtexto sagaz se refere a uma personagem coadjuvante, que materializa a ideia segundo a qual a orientação sexual nada tem a ver com a conduta exteriorizada pelo indivíduo (uma ideia progressista para a época).
Certamente o que é mais marcante em “Papillon” é o sofrimento imensurável ao qual o protagonista é submetido. As condições são degradantes e inegavelmente indignas, porém a orientação de obediência é visivelmente verídica. Quando os condenados ouvem, nos minutos iniciais, que a França os renegou, mais simbólica que essa frase é a submissão à nudez, mostra clara de que não possuem mais nada senão os próprios corpos, pelos quais devem zelar, sob pena de, talvez, perderem até mesmo isso. No calor da “Ilha do Diabo”, enquanto os guardas usam roupas brancas, os prisioneiros usam vestuário cinza, aumentando o sofrimento. A direção de Franklin J. Schaffner, embora não almeje chocar o público com truques rasteiros – como, por exemplo, violência gratuita -, o faz pela intensidade do calvário de Papillon (que faz com que a alimentação pareça um manjar divino quando comparada a outras torturas). A única exceção reside na cena da forca.
O diretor está mais preocupado com a composição visual dos planos do que sonora, tornando a trilha musical diminuta e pouco enfatizando a edição de som. Assim, quando o protagonista é submetido à reclusão (uma espécie de regime disciplinar diferenciado no sistema brasileiro contemporâneo), não é à toa que ele é filmado em plongée, enquanto um guarda passa por cima da cela. O local, inclusive, tem uma estética fascinante: embora de textura lisa, as paredes são molhadas e sujas, além de o espaço ser quase monocromático – quase não parecendo o mesmo filme que, em outros momentos, ostenta belos planos gerais praianos. Ainda visualmente, a maquiagem é muito boa para a época, com duas ressalvas: o envelhecimento é melhor elaborado em McQueen do que em Hoffman; e teria sido melhor evitar mostrar tanto os leprosos (cujo mistério na primeira aparição, através do uso de penumbra, é muito mais requintado do que torná-los explícitos depois, à luz do dia).“Papillon” é um retrato extremo do suplício, da punição, da disciplina e da prisão, fatores que, multicausais, deixam nas entrelinhas diversas mensagens. Não há preocupação em aprofundar na personalidade das personagens e o desnível narrativo do terço final é incômodo. Porém, enquanto um verossímil drama, consegue impressionar a ponto de não se deixar esquecer facilmente.
Dedico a presente crítica à minha amiga Cláudia, cinéfila e fã desse filme em especial.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.