PAPICHA – Muitas Nejis mundo afora [43 MICSP]
Mulheres jovens que querem viver livremente estão em todos os lugares. Porém, há lugares em que a união dessas condições (mulher jovem e viver livremente) é vedada. PAPICHA mostra a opressão sofrida por elas na Argélia do fim dos anos 1990, com enfoque em um grupo de jovens que, unidas, resistem ao domínio do extremismo religioso.
Na trama, Nadjma é uma estudante universitária fascinada pela moda e inconformada com a expansão autoritária dos grupos que tolhem as liberdades femininas. Certo dia, ela decide unir o fascínio ao inconformismo, organizando um desfile com as colegas universitárias e desafiando o Estado Islâmico que começava a se instalar.
Em que pese Nedjma (“Neji”) seja chamada de feminista, o que ela quer não é a igualdade em relação aos homens, mas a liberdade para fazer o que quiser. Insistindo que é feliz na Argélia, não aceita se mudar para outro país. Se opor à obrigatoriedade do uso do hijab e querer sair para festas à noite, por exemplo, não a tornam verdadeiramente feminista, sobretudo em uma realidade na qual calças jeans equivalem a nudez (se usadas por mulheres). Almejar a liberdade, todavia, pode custar caro em países islâmicos.
O grande problema do extremismo fica claro no convívio de Neji com as colegas: uma delas parece mais submissa ao namorado, outra aos costumes (usando o hijab na maior parte do tempo) etc. Elas têm seu espaço para fazer o que quiserem. O que incomoda a protagonista é a imposição de um modo de vida, como no cartaz no qual consta que, se a “irmã” não cuidar da sua imagem (ou seja, ocultá-la pelo vestuário), cuidarão por ela.
Lyna Khoudri transmite bem a irresignação vivida por Neji, convencendo também no drama exigido pelo papel. Boa parte do êxito do longa reside no bom trabalho de Khoudri. Mesmo não tendo tanta intensidade quanto a de outros filmes que tratam da mesma matéria (por exemplo, “O apedrejamento de Soraya”), o clímax dramático é bastante alongado no roteiro de Mounia Meddour e Fadette Drouard, com uma sequência avassaladora para o arco dramático de Neji (uma punch sequence ao invés de punch scene).
Enquanto a protagonista é uma personagem sólida, o script deixa algumas lacunas em relação às coadjuvantes. No início, parece que Wassila é tão importante quanto Neji, mas ela é esquecida da trama em diversas passagens. Outra coadjuvante de destaque, Samira, tem uma interessante subtrama, de difícil solução, contudo o roteiro parece esquecer o conflito, que passa a ser tratado como algo simples (o que com certeza não é). O texto ainda perde a oportunidade de abordar com maior profundidade a interpretação dos textos religiosos: quando Neji enfrenta as mulheres que aparecem de burca, seus argumentos são religiosos, o que evidencia que a religião pode amparar todos os discursos, a depender da interpretação dada.
Na direção, Meddour é capaz de envolver o espectador nas cenas de maior tensão, principalmente em razão do uso da câmera na mão. Há bastante esmero também na mixagem de som, o que reforça a imersão da plateia – por exemplo, na transformação de música intradiegética para extradiegética (ou o contrário). Nos momentos-chave, a diretora aplica recursos cinematográficos inteligentes, como na cena em que ocorre um assassinato atrás de Neji (a protagonista fica parada, chorando, no centro do campo e no foco, já sabendo o que ocorreu, de modo que o espectador vê o acontecimento de frente, mas fora de foco, tudo em completo silêncio).
“Papicha” é um filme bom por ter sido produzido de maneira competente, mas não consegue ter um diferencial que o torne inesquecível. Não é original, mas escancara uma realidade lamentável que persiste ainda hoje em diversos países. Ainda existem muitas Nejis mundo afora.
* Filme assistido na cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.