“PÂNICO” (1996) – A autoconsciência de um clássico
Uma jovem está sozinha na sua casa fazendo pipoca para assistir a um filme. O telefone toca e um desconhecido de voz aguda está na linha. Ela atende e quer saber quem é. O desconhecido não se identifica. Ligando e desligando algumas vezes, ele flerta com ela, os dois falam sobre filmes de terror e fazem um jogo. A curiosidade pela ligação se transforma em diversão, passa para uma ameaça velada e culmina em uma perseguição mortal. Ao fim da sequência de abertura, uma imagem chocante chega aos olhos do público. A sequência inicial tem todos os elementos que seriam vistos em PÂNICO para torná-lo um clássico do terror: tensão, humor, referências ao gênero, violência e uma concepção estética mais complexa do que a aparência. Da mesma forma que não se pode esquecer a abertura, não se pode menosprezar o valor do filme para o cinema de terror.
Dois assassinatos brutais aconteceram na cidade de Woodsboro. Policiais como Dwight Riley perseguem uma pessoa mascarada com uma longa veste escura que assassinou dois jovens com uma faca. Jornalistas como a repórter Gale Weathers, que escreveu um livro sobre uma tragédia ocorrida naquele local um ano antes, cobrem os crimes que crescem em quantidade. Nem os adolescentes do Woodsboro High School estão a salvo, sobretudo Sidney Prescott, que, além de enfrentar o trauma da morte brutal da mãe, se torna um alvo preferencial do serial killer.
No ano de lançamento de “Pânico“, os filmes slasher não mantinham a mesma força de períodos anteriores. Títulos marcantes, como “Halloween“, “Sexta-feira 13” e “O massacre da serra elétrica“, amargavam continuações duvidosas e produções dos anos 1990, como “Eu sei o que vocês fizeram no verão passado” e “Lenda urbana“, tinham recepções divididas. Apesar do cenário desafiador, o diretor Wes Craven, em parceria com o roteirista Kevin Williamson, conferiu um frescor especial ao subgênero. O próprio realizador já havia criado obras de terror que marcaram um estilo particular ou renovado abordagens, como “Quadrilha dos sádicos” e “A hora do pesadelo” (uma franquia que também se remodelou no sétimo filme). Em 1996, foi a vez de construir uma narrativa autoconsciente do que é, do universo ao qual pertence e dos outros elementos constitutivos desse universo, não esquecendo a realidade extrafílmica da qual os espectadores fazem parte. Assim, há citações, referências, intertextualidades, metalinguagens, ironias e ressignificações das imagens que ultrapassam a paródia e o pastiche.
“Halloween“, “O massacre da serra elétrica“, “A hora do pesadelo“, “Hellraiser“, “Faces da morte“, “Psicose“, “O silêncio dos inocentes“, “O exorcista“, “A morte convida para dançar” e outros títulos são mencionados ao longo da produção. Ao invés de as citações serem tratadas como sátira ou homenagem passiva, Wes Craven as utiliza como símbolos ativos que podem ser reapropriados e ressignificados com distintas possibilidades. Existem os usos com efeitos cômicos, como aqueles que citam trabalhos anteriores do cineasta (“Apenas o primeiro “A hora do pesadelo” é bom, as sequências não” é uma fala da abertura) e o trazem como figurante (o homem que limpa o chão do colégio); os usos que abraçam as convenções do terror sem menosprezá-las, como a caracterização do serial killer e o clichê antes criticado da protagonista que corre para dentro da casa em uma perseguição e não para um ambiente fora da casa; e os usos que propõem revisões de arquétipos e estereótipos, como a certeza de o serial killer ser um homem, a existência de motivos claros para os crimes e o moralismo na escolha das vítimas.
Poderia se argumentar que a intertextualidade não passa de um recurso apelativo para acessar a nostalgia dos espectadores, porém este conjunto de referências faz parte do universo dos personagens. Kevin Williamson cria várias situações em que filmes ou termos cinematográficos são invocados para determinar as interações entre os jovens e orientar a compreensão de diferentes acontecimentos. Por exemplo, Randy é o especialista nas regras do cinema de terror, que explica como sobreviver a um serial killer e discernir os inocentes dos suspeitos; Sidney e os colegas explicam o que sentem ou o estado em que outras pessoas estão através de analogias com “Carrie: A estranha” e “O exorcista“; Sidney e o namorado Billy conversam sobre seu relacionamento a partir das classificações etárias de filmes; Sidney, Dwight e Tatum imaginam quais atores os interpretariam se suas vidas fossem adaptadas para o cinema; e Tatum implora por sua vida para poder aparecer em uma sequência de “Pânico“.
O revisionismo não está presente apenas nas reapropriações de elementos do gênero, mas também na construção dos personagens icônicos que marcam o que viria a ser uma franquia. Decididamente, o papel mais reconhecido da carreira de Neve Campbell é Sidney Prescott, a protagonista que poderia se limitar simplesmente à moça virginal e vulnerável do slasher que está constantemente em perigo. A personagem evolui ao longo da obra para se tornar mais ativa e resolver a ameaça que a circunda, o que é metaforizado pela sua postura de tomar as rédeas do filme que poderia ser feito sobre a sua vida. Embora essa evolução se destaque nas continuações, já há indícios no primeiro filme de que ela não corresponde integralmente ao estereótipo da final girl e pode carregar outras nuances. Sidney não se mantém dentro da exigência de virgindade para se salvar nem se rende à convenção da punição após o sexo, além de ter um arco próprio relativo à superação dos traumas pela morte violenta da mãe há pouco tempo.
Além da protagonista, outros dois personagens são simbólicos daquele universo e das carreiras de seus respectivos intérpretes. Courteney Cox (apesar de também ser muito lembrada pela série “Friends“) é associada a Gale Weathers até hoje, a jornalista de métodos questionáveis e antiéticos que faz de tudo para obter sucesso e fama, inclusive lucrar com a tragédia familiar de Sidney. David Arquette tem sua imagem atrelada ao policial Dwight Riley, chamado de Dewey pelos moradores da cidade para infantilizá-lo e ridicularizá-lo, já que duvidam de sua capacidade investigativa. Com o passar do tempo, os dois personagens adquirem novos contornos que os humanizam e demonstram que não são somente uma ambiciosa sem limites nem um atrapalhado policial infantilizado. Neste primeiro filme, o romance que começa a se insinuar entre eles é crucial para transformar suas características e seus arcos narrativos.
Então, a obra criada por Wes Craven e Kevin Williamson se resume a homenagear, abraçar, comentar e revisar convenções por slashers e do terror? A dupla sabe que fazer isso poderia não ser o bastante e, por isso, não descuida do filme como produto artístico por si só, especialmente a construção dos momentos de suspense. A sequência inicial com a jovem Drew Barrymore já estabelece o que o diretor faria nas demais cenas em que o assassino ataca: as variações dos ângulos dos planos com enquadramentos fechados e instáveis. a trilha sonora de uma ambientação aflitiva, a violência dos golpes da faca mostrada frontalmente e o uso do extracampo como fonte de mistério para onde está a ameaça. Assim, os ataques e sua preparação são dignos do subgênero, o que reforça a iconografia do serial killer com a máscara Ghostface, a faca como arma dos crimes, a ligação telefônica para muitas de suas vítimas, o aparelho de distorção de voz e a pergunta metalinguística “Qual é o seu filme de terror favorito?”.
Os anos 1990 poderiam não ser o período de maior incidência dos filmes slasher, apesar de o terror continuar sendo produzido com diferentes estilos. No mesmo contexto, o movimento do pós-modernismo ainda deixava rastros em diversas áreas sob a perspectiva de que real e imaginário se fundem à medida que valores, regras e sentimentos coletivistas são contestados. Nas artes, o pós-modernismo propiciou a criação de imagens de simulacro que perdem um contato mais direto com a realidade e se constituem dentro do que é hiper-real através de referências e alusões a outras imagens. Este movimento pode ter ajudado a formar o que é “Pânico“, principalmente na sequência do terceiro ato em que vemos em nossas telas personagens vendo por outra tela a gravação de uma sala em que jovens assistem a filmes de terror em outra tela. E é absolutamente brilhante como Wes Craven e Kevin Williamson entrelaçam os acontecimentos da narrativa, os registros da gravação de uma câmera em uma van jornalística e as cenas de filmes de terror na TV em uma sala de estar. Os três níveis parecem exemplificar o que Billy fala para Sidney: “Tudo é filme”.
Um resultado de todos os filmes que já viu.