“OS OBSERVADORES” – Trabalhar um conceito
Ishana Night Shyamalan. O sobrenome da diretora pode ser o primeiro atrativo para o filme, sobretudo para aqueles curiosos com a estreia na direção de longas-metragens da filha de M. Night Shyamalan. A comparação pode ser impiedosa, já que faz o parâmetro do trabalho de uma mulher ser a carreira de um homem e joga sobre ela o peso de ter que ficar à altura do pai. De forma dialética, OS OBSERVADORES trabalha o extrafilme e outras inquietações da autora através do conceito de duplo.
Baseada no livro homônimo de A.M. Shine, a trama acompanha Mina em uma viagem para levar um papagaio para seu destino final a pedido do dono de uma loja de animais. No percurso, ela se perde em uma imensa e assustadora floresta no oeste da Irlanda. Sem conseguir achar a saída, refugia-se em um abrigo onde estão três estranhos. Os quatro personagens precisam se ajudar para sobreviver porque criaturas misteriosas saem durante a noite para vigiá-los e persegui-los. Enquanto eles ficam dentro do abrigo e se posicionam na frente de uma grande janela de vidro para serem observados estão seguros, mas nem sempre conseguirão cumprir essas regras.
Desde o princípio, a narrativa apresenta um conceito chave que se desdobra em dimensões diferentes. Nos primeiros minutos, a protagonista se mostra deslocada por ainda sofrer com uma trauma de infância e excêntrica por seus hábitos de sair à noite “disfarçada” com outra identidade. Dakota Fanning transborda uma estranheza na composição que faz a personagem aparentar uma vida dupla ou a emulação de outras vidas para fugir de uma realidade dolorosa. Além da cena em que conversa com um homem em um bar fingindo ser outra pessoa, interage com o papagaio Darwin e o ensina a repetir um alerta para não morrer e passa ela própria a repetir frases de uma ligação recebida. Em termos dramatúrgicos, Mina se duplica entre alguém que reprime dores do passado e alguém que assume os riscos de uma postura desafiadora.
Na floresta, Ishana Shyamalan continua na lógica de uma duplicação que não se reproduz perfeitamente. A protagonista não consegue superar seus traumas nem escapar para outra identidade. De forma similar, o terror sugere momentos de tensão que provêm de uma mitologia própria. Madeline, Daniel e Ciara são um trio que já estava perdido no local, embora não se saiba quanto tempo está ali, e seguem algumas regras específicas: esconder-se no refúgio à noite, não abrir a porta por nenhuma razão, colocar-se na luz para ser observado pelas criaturas e passar longe das tocas desses seres. Por vezes, a diretora não explora tão a fundo as possibilidades de tensão despertadas pela floresta e pelas criaturas, mas isso se dá porque a construção de sensações assim depende do conceito trabalhado. O interesse está também nas regras arbitrárias, impostas sem tanta contextualização, e nos paralelos entre a situação dos personagens e do papagaio (o refúgio se chama Poleiro e a disposição do trio em frente remete a animais em exposição).
A duplicação imperfeita se traduz novamente pela maneira como o universo diegético referencia outras obras e cria um conjunto jamais reduzido a uma simples cópia. O cuidado para não atrair os monstros lembra “Um lugar silencioso” e as ameaças sobrenaturais relacionadas à floresta se assemelham a “Lost“. E o próprio vínculo familiar com M. Night Shyamalan aparece como referências criativas da realizadora, fazendo todo o aspecto fantasioso encontrar ecos em “A vila” e “A dama na água“. No entanto, seria injusto afirmar que a narrativa seria derivativa ou carente de uma assinatura particular. O gesto de duplicar a voz humana de um papagaio, o esforço de Mina de viver outras identidades e a escolha estilística de valorizar o conceito em sintonia com a experiência sensorial não levam a replicação exata. Por isso, os diálogos com outras produções são feitos para dar vida a um folk horror que combina traços dramáticos, fantasia mística e suspense de sobrevivência.
É curioso perceber que a cineasta emprega o conceito geral para a construção estética do filme em sintonia com as discussões contemporâneas sobre o terror. Na conjuntura atual, a obsessão pela verossimilhança contamina diferentes gêneros, como o próprio horror, como se tudo precisasse ser explicado dentro de um realismo estéril. A dramatização direciona muitas obras, sobretudo aquelas ligadas à produtora A24, a assumirem uma pose de superioridade por excesso de psicologização. E alguns diretores, como o próprio Shyamalan e Sam Raimi, se mantêm como agentes da resistência contra o fim da fantasia imaginativa no cinema, que não cede às pressões de uma lógica racionalizante. “Os observadores” transita pelas três dimensões anteriores, aceitando o fantástico pelo que é e flertando sem exageros com o realismo e com os elementos psicológicos. Em alguns momentos, o único detalhe que sufoca as características fantasiosas da história é a predominância de cores escuras, que são utilizadas costumeiramente para dar uma roupagem verossímil a algo fora de nossa realidade material.
O próprio contexto extrafilme que poderia jogar contra a diretora é incorporado à ideia de duplicação. Muitos espectadores podem assistir ao filme esperando encontrar o cinema do pai. As referências reforçam essa impressão inicial. E a virada para o terceiro ato através de um plot twist (algo muito associado a M. Night Shyamalan por conta, por exemplo, de “O sexto sentido“, “Corpo fechado“) poderia confirmar a emulação de sua base familiar. Apesar das aparências, Ishana Shyamalan faz a reviravolta ser mais um componente para aprofundar o conceito geral nas criaturas. Elas próprias possuem uma espécie de duplicação imperfeita que acompanha sua evolução narrativa. O desconhecimento do que seriam é guiado pelo uso eficiente da escuridão e de ângulos específicos de câmera, deixando as criaturas fora da compreensão racional. À medida que novas informações são descobertas, a perspectiva narrativa se debruça sobre o encontro entre mitologia, história e contradições humanas, dessa vez utilizando a escuridão como recurso convidativo para o público se engajar nos conflitos de ordem mitológica.
Como estreia na direção de longas-metragens, “Os observadores” pode ter eventuais deslizes decorrentes de escolhas que não funcionam tão bem. Alguns resquícios do realismo que suga as cores do fantástico, o comedimento de sequências tensas que não vão fundo nas sensações propostas e as concessões pontuais a um didatismo que esmiúça as explicações da fantasia atrapalham um universo que sabe o que quer ser. Ainda assim, a diretora demonstra um potencial muito interesse por acreditar na fantasia em detrimento das pressões atuais por um terror cada vez mais realista. E isso acontece porque ela é movida por um conceito que jamais é deixado de lado, aparecendo também em uma conclusão que reconecta o arco da protagonista, a relação das criaturas com os humanos e o terror.
Um resultado de todos os filmes que já viu.