“OS INCONFIDENTES” – História oficial colocada em xeque
Década de 1970 no Brasil. Vivia-se um tempo de autoritarismo, perseguição política, repressão violenta, crescimento econômico desigual e nacionalismo autoritário. Na cultura, as ambiguidades se multiplicavam em um cenário de censura artística, tentativas de regulação de uma política cultural pelo Estado, aumento do público para o cinema brasileiro e uso de brechas no sistema por parte de artistas de esquerda. Se a ditadura civil-militar tentava impor determinado projeto de nação e leitura da história nacional, OS INCONFIDENTES questionava os cânones oficiais do seu período de lançamento e dos passados encenados ou alegorizados.
No século XVIII, Minas Gerais está em ebulição. O ciclo do ouro está em seu auge, a colonização portuguesa reforça os mecanismos de dominação dos colonos e diversos grupos sociais se indignam diante da opressão colonial. Então, padres, poetas, militares, políticos, comerciantes e fazendeiros insatisfeitos se unem em uma conspiração contra Portugal. O levante fracassa antes de começar e os revoltosos são capturados. Entre eles, está Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, um dos principais nomes da Inconfidência Mineira.
A primeira subversão da narrativa envolve a própria abordagem de filme histórico. Diferentemente de construções estilísticas tradicionais, “Os inconfidentes” dispensa o realismo histórico ao utilizar os materiais dos autos da devassa (as peças produzidas pelo processo judicial dos inconfidentes), versos de Claudio Manoel da Costa, Tomás Antonio Gonzaga e Alvarenga Peixoto e a obra “Romanceiro da inconfidência” de Cecília Meireles. Tais fontes são trabalhadas diretamente pelo diretor Joaquim Pedro de Andrade através de uma mise-en-scène e de um roteiro capazes de fazer o espectador repensar o que julgava serem verdades do passado brasileiro e refletir criticamente sobre o tempo presente de lançamento da produção. Auxiliado pelo roteirista e montador Eduardo Escorel, o cineasta cria e integra sequências de declamações líricas de diálogos e monólogos, muitas vezes filmadas quebrando a quarta parede com o encontro do olhar dos personagens e o olhar da câmera.
O conteúdo dos diálogos também reorienta a forma como se pode compreender a Inconfidência Mineira sob bases diferentes daquelas que certa historiografia tradicional se assentou. A rebelião já foi encarada como um movimento nacionalista de ruptura com Portugal e instrumentalizada como símbolo de uma suposta tradição republicana brasileira. Porém, o filme se interessa pelas contradições das propostas dos revoltosos, que passam pela defesa da liberdade econômica e do fim da opressão tributária, ao mesmo tempo que preservam a escravidão como se vê no aproveitamento do trabalho de africanos escravizados. A estrutura narrativa ajuda a dar ao fenômeno sua própria historicidade sem idealizá-lo, transitando entre a mobilização dos inconfidentes, sua captura por forças políticas e militares, a violência do tempo de prisão, o flashback dos planos para a revolta e a decretação das punições.
Rever os sentidos da conjuração ocorrida em Minas Gerais implica também discutir as controvérsias em torno da questão da identidade nacional. Ao invés de supor a existência precoce de um nacionalismo no século XVIII, Joaquim Pedro de Andrade problematiza a compreensão do que seria o povo naquele contexto para os inconfidentes. Por um lado, é tratado como elemento crucial para o início do levante (era preciso esperar a insatisfação popular com a aplicação da derrama), por outro, é visto como uma das razões para seu fracasso por não ter se envolvido nos acontecimentos. De qualquer modo, a população sempre se encontra afastada de um movimento essencialmente elitista, que tem seus preparativos encenados como algo burocrático e caricatural. E para um diretor vinculado ao Cinema Novo, tendo produzido, por exemplo, uma das histórias de “Cinco vezes favela” e “Macunaíma“, o debate sobre povo e nação constitui um interesse fundamental.
Em se tratando de discussões sobre nacionalismo, o filme subverte outro aspecto próprio da história oficial do Brasil: o papel da arte na promoção da nação. No mesmo de sua estreia, 1972, foi exibido também “Independência ou morte” de Carlos Coimbra, uma obra que encena o processo de independência e os primeiros anos do império brasileiro. De teor conservador, o drama histórico reproduz um discurso ufanista de heroicização de D. Pedro I em torno da pintura de Pedro Américo, que foi cooptado pela ditadura no momento das comemorações pelo Sesquicentenário da Independência. Ao contrário disso, Joaquim Pedro de Andrade analisa criticamente a ideia de patriotismo e a história do país, sendo assim um contraponto interessante ao seu contemporâneo. Primeiro, porque recusa a grandiosidade na abordagem estilística com cenários minimalistas e sem decorações expressivas; segundo, porque aborda a figura de Tiradentes de maneira ambígua entre o mártir próximo a Jesus Cristo e a alegoria para a situação política da década de 1970.
Tiradentes começa sendo mais um dos personagens envolvidos na Inconfidência Mineira e não o protagonista absoluto, até progressivamente receber nuances adicionais. A transição de sentidos ocorre a partir de subtextos que comentam o autoritarismo da ditadura e a violência da repressão sobre setores oposicionistas, por vezes inseridos como um piscar de olhos para o espectador atendo através da quebra da quarta parede. Em dado instante, comenta-se que o poder político jamais deveria ser concentrado nas mãos de uma pessoa ou grupo nem para os militares; em outra passagem, afirma-se que o povo brasileiro deveria ter sua liberdade protegida contra qualquer espécie de opressão. Tendo como base uma trama que narra o combate de uma revolta pelas autoridades coloniais, a narrativa evoca a repressão de grupos de resistência por parte da ditadura civil-militar. Nesse ponto, a sequência final do enforcamento de Tiradentes é ressignificada como uma crítica sofisticada à realidade vigente.
De um enforcamento no século XVIII, as imagens de “Os inconfidentes” transbordam para 1972. Era ano de Sesquicentenário da Independência e a ditadura civil-militar promovia manifestações cívico-militares de caráter ufanista. O choque de planos possibilita à narrativa confrontar passado e presente, elementos ficcionais e documentais, comemorações nacionalistas e visão crítica da história. São esses embates imagéticos, sensoriais e intelectuais que fazem a cidade de Ouro Preto ser trabalhada para além de sua monumentalização histórica convencional e a Inconfidência Mineira ser abordada na chave da crítica a um governo autoritário e opressor. E se ainda houver alguma dúvida a respeito da possibilidade de o passado iluminar contestações ao presente, o plano final de pedaços de carne sendo cortados evidenciam a persistência da violência ao longo da história do Brasil.
Um resultado de todos os filmes que já viu.