“OS FANTASMAS SE DIVERTEM” – Os espectadores se divertem um pouco
Reassistir filmes é importante para todos os amantes dessa arte. As experiências sempre serão diferentes, podendo despertar uma percepção que não apareceu na primeira vez e uma relação emocional que não era possível em outros tempos. Da mesma maneira, assistir mais uma vez pode ser a oportunidade de reelaborar a obra e reconstruir impressões consolidadas pela memória. O processo, então, pode não ser tão positivo como se esperava. Em OS FANTASMAS SE DIVERTEM, rever a comédia pode ser colocar em questão algumas lembranças nostálgicas e a própria construção narrativa e visual do trabalho de Tim Burton.
Bárbara e Adam Maitland são um casal que morrem em um acidente de carro e se encontram presos em sua antiga casa. Quando uma nova família se muda para o local, eles tentam, sem sucesso, assustar os recém-chegados para permanecer como os únicos moradores. As tentativas fracassadas de assombração atraem Beetlejuice, um espírito incomum que ameaça o casal recém-falecido e a adolescente Lydia.
Lançado em 1988, o filme marcou alguns dos primeiros passos do diretor Tim Burton em sua carreira no cinema. Anteriormente, ele havia dirigido títulos como “Frankenweenie” e “As grandes aventuras de Pee-Wee“, que já demonstravam um estilo inconfundível: o humor inusitado, a estética expressionista herdada do Expressionismo alemão e a ambientação sombria. Em “Os fantasmas se divertem“, tudo que cerca a apresentação e a morte dos protagonistas segue essas características. Na abertura, o movimento da câmera confunde o que são as residências reais e a maquete da cidade. O acidente automobilístico é causado por ações inesperadas de um cão. E o retorno ao lar para descobrirem que tinham morrido assume uma encenação cartunesca e sobrenatural, que altera a iluminação para um tom místico e mostra a construção como algo saído de um pesadelo diferente da realidade em que eles viviam até então.
A descoberta da morte e da chegada dos novos moradores introduz o conflito central da trama: Adam e Bárbara pretendem ter a moradia somente para eles e, para isso, decidem assustar a família Deetz até expulsá-la dali. Logo, o cineasta evoca as clássicas histórias de casas mal-assombradas e fantasmas para construir uma atmosfera cômica que explora o imaginário da vida após a morte em um universo distante de qualquer lógica racional. A narrativa cria uma iconografia que delimita o mundo diegético de forma eficiente e informa com clareza o que está em jogo, como o livro tutorial para os recém-falecidos, o escritório de auxílio social para os mortos e o espírito outsider de Beetlejuice. No entanto, lembranças anteriores de que a produção seria constantemente inventiva em termos visuais, sobretudo em relação aos efeitos visuais criados para os sustos, não se confirmam ao revê-la. Em diversos momentos, a construção da cena parece muito comportada e não aproveita o tom cartunesco, sombrio e cômico dos ambientes. A passagem pelo escritório de auxílio social, revelando outros fantasmas, uma burocracia imprevisível no mundo espiritual e as locações, possui maior criatividade, embora seja pontual.
Além de uma encenação contida, a trama também parece constantemente vazia. Algumas ideias não são levadas a nenhum lugar particularmente expressivo e deixam a experiência restrita a alguns estímulos efêmeros. O apego pela residência, iniciado no desejo de passar as férias ali e não vendê-la a despeito das pressões transformado nas tentativas de assustar a nova família, não se desenvolve para para a relação entre o casal e a construção. A chegada de Lydia, uma adolescente gótica que tem certa fascinação pela morte, poderia proporcionar algumas cenas interessantes com os fantasmas, porém se resume apenas à sua capacidade de vê-los. E a decisão dos pais da jovem de explorar financeiramente o existência de espíritos se torna um núcleo periférico de pouco peso para o desenvolvimento da narrativa. Em contrapartida, é possível reconhecer alguns bons momentos de interação entre os protagonistas vividos por Alec Baldwin e Geena Davis, da imagem sombria de Lydia Deetz através do trabalho de Winona Ryder e da pose egocêntrica de Delia Deetz interpretada por Catherine O’Hara.
Outra recordação da primeira experiência que pode ser desafiada é a presença constante de Beetlejuice, quase como se fosse o dono do filme. Tal memória se solidificou como uma certeza que não pode ser verificada na prática à medida que a trama se desenvolve. O personagem é coadjuvante e não possui tanto tempo de tela como a imaginação poderia supor. Isso não quer dizer, entretanto, que a atuação de Michael Keaton não seja inspirada, afinal os trejeitos expansivos, as variações no tom de voz e a energia caótica de seu comportamento fazem com que toda a atenção da câmera e do público seja direcionada para ele. Além disso, a maquiagem cartunesca com os olhos pintados de roxo, o cabelo amarelo desgrenhado e as marcas verdes putrefatas pele, atrelada ao ambiente farsesco do cemitério na maquete, reforça o poder imagético de Beetlejuice. Quando ele não está em cena, a força cômica, bizarra ou visual da narrativa deixa de estar evidente e se amortece diante de acontecimentos sem tanto vigor.
Existe também mais alguns aspectos estilísticos que dependem muito da presença de Beetlejuice, surgindo ou sumindo por sua dependência ao personagem. A utilização expressiva dos cenários e as brincadeiras com a invasão do universo espiritual sobre o mundo terreno são condicionadas a esse fantasma. Desde o princípio, Tim Burton ressalta a importância da casa, da maquete e do mundo dos mortos para a trama e alterna entre abordagens mais ou menos realistas a depender da sequência. Entretanto, as experimentações visuais praticamente giram em torno somente do espírito espalhafatoso de Michael Keaton, à exceção da caracterização da residência como uma área isolada para Bárbara e Adam. Ao participar da cena, Beetlejuice faz ressurgir as diferenças de escala entre a maquete e a casa, as interações entre o cemitério e os cômodos da habitação e os efeitos visuais transgressores de ações supostamente lógicas. Em compensação, quando não se faz presente, tais elementos não estão mais lá.
Reassistir filmes é importante para os amantes dessa arte. Como qualquer experiência proveniente das atividades humanas, viver algo uma única vez pode ser marcante por conta de um descargo de energia espontânea ou especial. Reviver algo do passado permite outras sensações que podem ser, ao seu modo, fascinantes, como a possibilidade de não ter apenas momentos isolados com pouca conexão. No caso do cinema, reassistir filmes pode ser pedagógico por aprendermos algo que não havíamos nos dado conta ou sensorial por oferecer diferentes relações emocionais com o que foi visto. Rever pode manter ou reforçar lembranças boas ou ruins, pode transformar lembranças em boas ou ruins. Em “Os fantasmas se divertem” pode significar uma experiência marcada por isolamentos. Tomadas por si só, as duas cenas musicais e as aparições de Beetlejuice podem ser contagiantes e, ao mesmo tempo, momentos pontuais em meio a um filme que não forma um conjunto na mesma proporção.
Um resultado de todos os filmes que já viu.