“OS FABELMANS” – Um mestre e a compreensão do poder do cinema
Apenas os maiores diretores de cinema compreendem o imensurável poder da sétima arte. Em razão dessa compreensão, são capazes de transmitir emoções memoráveis, sensações indescritíveis e reflexões valiosas. Poucos alcançam o status de Hitchcock, Chaplin, Kurosawa, Truffaut, Ford, Welles, Fellini, Kubrick, Tarkovsky, Bergman e Rocha, dentre outros. Qualquer lista desse tipo não pode deixar de incluir Spielberg, que em OS FABELMANS demonstra uma fração de como funciona o espírito de um mestre do cinema.
Depois de assistir ao primeiro filme de sua vida, Sammy Fabelman nunca mais foi o mesmo. Fascinado pela magia do cinema, filmar se torna seu principal interesse, o que ele faz sempre que pode. É por essa atividade que Sammy nutre seu maior amor, mas é também através dela que descobre um segredo de família.
Steven Spielberg reconhece expressamente “Os Fabelmans” como o “filme mais pessoal” que já fez. Sua prolífica filmografia vai de clássicos originais como “Tubarão” e “A lista de Schindler” a elogiáveis remakes como “Amor, sublime amor” (2021). Seu talento não tem fronteiras de gênero e, mesmo em longas de qualidade inferior (“Indiana Jones e o reino da caveira de cristal” sendo o principal exemplar), seu trabalho continua sendo superior ao da maioria dos cineastas. O longa de 2022* poderia ser uma ode a si mesmo, mas, se nele Spielberg faz uma homenagem, é à arte de filmar.
O roteiro de Spielberg e Tony Kushner é uma quase biografia. O filme não constitui exatamente um retrato da vida do protagonista, mas parte de uma etapa da sua vida (infância e adolescência) para propagar sua ideia governante (algo similar ao que foi feito recentemente em “Licorice Pizza” e em “Armageddon time”), em uma mistura de coming of age e louvor à sétima arte que traduz o quão precioso o cinema consegue ser. Na primeira parte, Sammy está no Arizona; na segunda, já adolescente, na California. Naquela, prevalecem momentos alegres, o que o design de produção representa com tons de amarelo e azul turquesa; nesta, há um hiato dramático no qual as cores são acinzentadas (em especial na nova escola).
A crise enfrentada por Sammy na California é compartilhada por sua mãe, Mitzi. Os dois compartilham uma alma apaixonadamente artística totalmente distinta daquela de seu pai, Burt. Para convencer o filho a ir à primeira sessão de cinema, enquanto Mitzi (Michelle Williams, emocionante e bastante entregue ao papel) faz uma analogia com sonhos, Burt (Paul Dano, um pouco apagado) fala da persistência da visão. É apenas o tio Boris (Judd Hirsch, com histrionismo adequado à personagem) que é capaz de entender e apontar para o protagonista como funciona essa alma artística (seu monólogo, porém, exagera no didatismo). Cabe a Boris e a Bennie (Seth Rogen, ótimo na comédia e no drama exigidos no papel), um amigo da família, conduzir a maior parte das cenas de humor, que é sempre um humor doce e inofensivo. O tom cômico leve, por sinal, está inclusive no último plano, deveras poético.
Tecnicamente, “Os Fabelmans” tem na montagem e na fotografia seus melhores atributos, sem prejuízo da boa trilha de John Williams. Há muita inteligência na montagem de Sarah Broshar e Michael Kahn, por exemplo, no corte por associação de ideias em que Sammy está prestes a dormir – ele começa a sonhar com um trem (primeiro plano), acorda sua mãe com um grito (segundo plano) e o plano seguinte (terceiro) não é o que o espectador espera -, e na elipse da passagem da infância para a adolescência – que tem por base dois cortes intradiegéticos (Sammy está filmando nos dois planos) e um extradiegético (o salto temporal). Janusz Kaminski (parceiro de longa data de Spielberg, como os outros três) apresenta no longa enquadramentos preciosos, como aquele em que o trenzinho se move na direção do rosto do pequeno Sammy (Mateo Zoryan, cuja expressividade chama a atenção), utilizando ainda a contraluz (mesmo em pontos indiretos do plano) como fonte para uma aura leve na vida do protagonista.
“Os Fabelmans” é um filme caloroso, o que se percebe das várias cenas em que Sammy exibe seus filmes a outras pessoas, que aparecem reagindo ao que estão vendo. O jovem Gabriel LaBelle capta bem a ideia de que filmar é a raison d’être de Sammy, sendo exigente com o que está criando, mas sobretudo inventivo e habilidoso. É de impressionar a maneira como ele, precocemente, percebe que um filme cria uma narrativa e que essa narrativa depende de uma filmagem convincente – ou seja, a emoção de seu ator precisa parecer genuína, os tiros precisam parecer reais, e assim por diante. O cinema, eventualmente, é fonte de conflito, como na insistência de Burt de que seria um hobby, chegando a sugerir a sua inutilidade. Contudo, também pode ser motor para conciliação, o que ocorre na cena de Mitzi no armário, na que a irmã assiste às filmagens da praia, na da reação de Logan (Sam Rechner) etc. O valioso aprendizado fornecido por clássicos como “O homem que matou o facínora” (referenciado expressamente) justifica a paixão de Sammy. Sua maior lição, todavia, é sobre o poder deliciosamente avassalador do cinema, algo que apenas um mestre como Spielberg é capaz de traduzir com suas obras.
* Oficialmente, “Os Fabelmans” é uma produção de 2022, ano em que estreou nos EUA. No Brasil, contudo, sua estreia foi em 2023.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.