“OPONENTE” – O silêncio não enfrenta o medo [47 MICSP]
OPONENTE começa com uma citação de um excerto de um poema de Audre Lorde sobre a não proteção através do silêncio. Em seu contexto original, a escritora afroamericana se referia às mulheres, principalmente as negras, entendendo que romper o silêncio era necessário para romper com o medo. No filme, o recorte do poema permite relacioná-lo a um silêncio que, tal qual no original, não é protetivo, apenas camufla medos (d)e desejos reais.
Iman e sua família vivem em um hotel para refugiados na Suécia em razão de um boato sobre ele que os colocou em risco no Irã. Apesar de contrariar Maryam, sua esposa, ele decide voltar ao wrestling, esporte no qual destacou em sua terra natal, pois isso pode ajudá-los a receber abrigo na Suécia caso lute pelo país europeu. No entanto, o boato que o atingiu retorna, deixando-o em constante desespero.
Apesar de um péssimo trabalho de foco, dificultado pelo uso recorrente de câmera na mão, imageticamente, o diretor Milad Alami tem um trabalho bastante sólido, com natural ênfase no wrestling. Iman é graficamente contrastado dos demais lutadores pelas roupas (enquanto um deles aparece apenas com o calção apertado alongando, o protagonista usa uma camiseta por baixo do traje de luta), mas sobretudo pelo corpo: ele não é tão magro quanto os demais, seu tom de pele, naturalmente, não é o mesmo e sua barba é grisalha, denotando mais idade. Com mais pelos corporais, ele é praticamente o oposto de Thomas, detalhes que se tornam relevantes por força do homoerotismo que Alami insere na obra.
Há mais de uma cena no chuveiro com planos-detalhe no corpo dos atletas, o corpo de Thomas é também filmado em slow motion de perto, com a câmera subindo. O tato assume especial relevância, como na cena em que Iman é alongado por Thomas, cujo mamilo encosta no colega e cujas mãos apalpam seu corpo. Como se fosse um silêncio, nada fica expresso, há troca de olhares e a sugestão tem força no tato (Thomas toca o lábio e encosta em Iman quando está na cama abaixo da dele) e na própria mise en scène (a cena do chuveiro, com zoom in em que, a bem da verdade, nada é revelado claramente). Assim, além do homoerotismo do próprio wrestling (os agarramentos, os collants apertados…), o longa é filmado com enquadramentos fechados nos corpos dos atletas e cenas sugestivas, coerentes com essa proposta.
Uma importante cena de luta coloca Iman, de azul, contra Thomas, de vermelho – cor que pode simbolizar a atração nutrida por ele. Para elevar a tensão, inclusive sexual, eles são filmados de perto e fazem poses também sexuais (por exemplo, quando este fica por cima daquele, com a boca próxima ao seu ouvido), tudo enquanto Maryam (Marall Nasiri) assiste, perplexa. Existe uma linha tênue entre o que Iman deseja e o que precisa. De um lado, o contexto opressor cria uma demanda por espaço ou mesmo fuga escapista. Na cena da festa, enquanto pula e extravasa (dentre outros atos), não há certeza se o que está fazendo é aliviar uma tensão ou saciar uma vontade. Isso porque, por outro lado, a sugestão é contundente no sentido de que há sentimentos homoafetivos por parte do protagonista.
Essa ambiguidade é muito bem transmitida pelo ótimo Payman Maadi, que compreende que Iman é um homem atordoado, que não quer abrir mão de seu papel de patriarca, fazendo valer esse papel, mas que também não consegue rejeitar por completo impulsos voluptuosos. Além disso, a fragilidade que Iman tenta esconder é um sentimento complexo que Maadi interpreta com maestria. Por sua vez, Björn Elgerd é uma escolha certeira para Thomas, primeiro pela oposição estética entre os dois, e segundo pelos olhares desferidos, que também são ambíguos. Elgerd transita entre o provocativo e o inocente, uma figura sedutora tão angelical quanto diabólica, do ponto de vista de Iman. Em determinado momento, o que parece é que os dois pacificaram sua relação como uma amizade, em outro, parece ter havido uma quebra, subentendida, em que a amizade se tornou algo diferente. Ainda que tenha se tornado, seria puramente sexual?
Outro destaque do longa é o design de som, cuja trilha musical é impecável para conduzir o público pela atmosfera pertinente a cada cena (tensão, ação, alívio, apreensão, drama etc.), havendo ainda a consciência de que a exclusividade de sons intradiegéticos, em alto volume, pode ser a melhor opção (é a cena em que Iman volta ao ginásio, em que se ouve até mesmo a fricção dos collants dos corpos lutando). Há esmero na mixagem, como na cena em que Iman retorna à festa do hotel após falar no celular, em que a música típica da festa perde espaço para a música de tensão.
“Oponente” é construído narrativamente com complexidade ao criar conflitos internos e externos para o protagonista. Internamente, há a sexualidade; externamente, é abordada a condição dos refugiados, mostrando que até mesmo as questões práticas e burocráticas são difíceis, podendo deteriorar as relações familiares (tanto quanto o conflito interno). Nos dois casos, a omissão através do silêncio não soluciona o problema do medo, tanto o medo de se aceitar quanto o medo de enfrentar.
* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional em Cinema de São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.