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“ONDA NOVA” – Muitas restaurações

O Brasil atravessava a redemocratização na década de 1980, desarticulando instrumentos autoritários da ditadura civil-militar. A censura foi um dos mecanismos que esteve sob o alvo da distensão, porém se engana quem pensa que ela foi rapidamente desmobilizada. A interdição de assuntos políticos que, supostamente ameaçam a segurança nacional, pode ter sido enfraquecida. O mesmo não pode ser dito acerca da interdição moral a obras que “feriam os bons costumes”. A restauração de ONDA NOVA (originalmente, “Onda nova: Gayvotas Futebol Clube“) para exibição nos cinemas em 2025 é uma forma de restaurar também a história do país e do cinema brasileiro e a liberdade transgressora de outros tempos.

(© Vitrine Filmes / Divulgação)

Em 1983, um time de futebol feminino é formado em plena ditadura. Aquele era o primeiro ano de regulamentação do esporte para as mulheres no país, após quarenta anos de banimento. As jogadoras recebem o apoio de atletas renomados da época, como Wladimir e Casagrande, enquanto se preparam para os jogos amistosos marcados. O mais importante entre eles é o confronto com a seleção italiana. Paralelamente, elas lidam com os preconceitos de uma sociedade conservadora e com seus próprios conflitos pessoais e familiares.

No ano de seu lançamento, o filme foi censurado pelo regime e não é difícil perceber as alegações dos censores para vetar a exibição em face do autoritarismo político e do reacionarismo comportamental. Os diretores Icaro C. Martins e José Antonio Garcia criam uma comédia erótica e anárquica que, pode não ser associada tradicionalmente às pornochanchadas, mas divide com elas o estilo de produção similar no polo cinematográfico independente da Boca do Lixo. A própria construção narrativa também demonstra essa aproximação, já que não se trata de uma trama convencional preocupada em desenvolver seus eventos de modo lógico. A liberdade moral e sexual dos personagens se reflete na condução da obra, pois salta de um núcleo a outro descompromissadamente, lida com questões complexas sob a chave do humor provocativo e questiona o conservadorismo das imagens consideradas aceitáveis ou não.

O elemento “subversivo” que se destaca nos primeiros minutos é a representação do futebol, distante de qualquer caracterização retrógrada do esporte praticado apenas para homens. A prática da modalidade é naturalizada para as mulheres, ou melhor, é flexibilizada para identidades de gênero cambiantes. A mãe de Lili a proíbe de jogar por supostamente ser uma atividade masculinizante. Em contraste, atletas reais do Corinthians, Casagrande e Wladimir, jogam com o time da Gayvotas vestidos com roupas femininas. Além disso, os cineastas trabalham de forma frontal o caráter sensual que pode haver no futebol em função da importância do corpo para os jogadores e para as dinâmicas pré e pós-jogo. Nesse sentido, a câmera revela sem tabus a nudez feminina e masculina nos vestiários sem objetificar nenhuma delas. Os corpos são retratados em sua espontaneidade, podendo evidenciar o erotismo dos homens na sequência em que jogadores participam do programa do Chacrinha ou simplesmente dar conta das características físicas naturais dos indivíduos.

De acordo com a encenação da nudez, a narrativa igualmente naturaliza outras questões que despertam temores do moralismo intolerante brasileiro. As relações sexuais e as distintas orientações da sexualidade se sucedem dentro da perspectiva da liberdade e da diversidade de corpos. As várias sequências de sexo, heterossexuais ou homossexuais, dialogam com a pornochanchada ao abraçar o prazer e o humor nas situações em que os personagens se envolvem. Os conflitos específicos de cada um deles simbolizam as diferenças geracionais sentidas por uma juventude marcada pela rebeldia da contracultura dos anos 1960. Lili, vivida por Cristina Mutarelli, tem um embate com a mãe sobre poder ou não jogar futebol, algo contrastado com os papeis sociais de gênero naquela família. Rita, interpretada por Carla Camurati, sofre com a pressão da monogamia mesmo sendo uma jovem de personalidade livre. E Neneca, vivida por Neide Santos, lida com os obstáculos para a manutenção do time acusado de atitudes lascivas e consumo de drogas.

As relações amorosas entre os personagens são uma porta de entrada para um universo diegético crítico e emancipador, embora os sinais de tais características possam ser discretos. Zita, interpretada por Cristina Bolzan, engravida e se esforça para reunir dinheiro para pagar pelo aborto, uma decisão tratada com naturalidade pelo roteiro e como uma crítica ao controle social sobre o corpo feminino. Enquanto Neneca e seu namorado encaram as cobranças do presidente do time no sentido de garantir uma conduta “ideal” frente à mentalidade da sociedade da época, os espectadores podem ver um quadro do presidente da República Emílio Médici. A aparição de um retrato do governante sintetiza como o futebol apropriado pela ditadura seria o extremo oposto do esporte representado pelo filme. Paralelamente, a narrativa utiliza referências históricas do período para dar vazão ao sentimento de liberdade anárquica. Além da presença de jogadores do Corinthians ou outras figuras relacionadas ao clube, a participação de Caetano Veloso também cumpre esse papel libertário por seu simbolismo na resistência contra o regime. Outro aspecto crucial é a escolha da trilha sonora, composta, por exemplo, por “Vale tudo” de Tim Maia, “Groupie” de Gal Costa e “Seu tipo” de Eduardo Dussek.

Valentina, Neneca, Zita, Geleia, Rita, Vera, Nonoca e Batata são algumas jogadoras do Gayvotas Futebol Clube que representam temas como sexualidade feminina, uso de drogas, aborto, nudez, papeis sociais de gênero e futebol. Mesmo quando a narrativa se encaminha para acontecimentos sérios e/ou trágicos, “Onda nova” reafirma o predomínio da comédia erótica disruptiva e provocativa, do senso de experimentação de uma liberdade artística e comportamental. Na sequência final, fica claro que o desejo da autonomia criativa prevalece e dispensa uma conclusão tradicional que feche todos os arcos dramáticos. Sendo assim, a restauração do filme décadas depois oferece uma análise crítica de uma parte da história do país ainda afetada pelo autoritarismo político e pelo cerceamento moral. Nesse processo, reconhece a importância das pornochanchadas para a história do cinema brasileiro e para a contestação de padrões normativos e castradores de uma época. Lançado em 2025, permite reflexões sobre os retrocessos que se vive quando o conservadorismo novamente atinge níveis desproporcionais.