“O URSO DO PÓ BRANCO” – Menos medo, mais zombaria e mais qualidade
Há comédias de terror que abraçam mais o terror, como “A morte te dá parabéns”; outras, preferem se filiar mais ao humor, como “O que fazemos nas sombras” (que gerou uma série homônima e uma derivada, “Wellington paranormal”). O URSO DO PÓ BRANCO se aproxima mais do segundo grupo e é certamente nisso o seu maior acerto.
Cai um avião com uma carga de cocaína em um parque florestal. O traficante responsável pela droga tenta recuperá-la ao mesmo tempo em que a polícia investiga o caso, porém um urso negro que vive no parque se torna um problema tanto para eles quanto para todas as demais pessoas que por algum motivo se aproximam do local.
Se é verdade que “O urso do pó branco” não inventa a roda com a hibridização dos gêneros, não é menos verdade que ele consegue sair do uso de zumbis que é comum nas comédias de terror. Além disso, para um quarto trabalho de direção de longa-metragem, Elizabeth Banks revela um elogiável domínio de diferentes linguagens cinematográficas. No terror, o uso de jump scares não é muleta utilizada a todo instante, o gore também não ultrapassa o limite do coerente e a cineasta consegue, por vezes, criar uma atmosfera compatível com a proposta (por exemplo, na sequência em que Tom e Beth entram na cabana). Ao final, Banks acena até mesmo para o western através da trilha e do contexto criado pela narrativa.
É no humor, contudo, que a produção mostra o que tem de melhor. Os elementos mais comuns do horror comedy marcam forte presença (personagens estúpidas, trapalhadas em série etc.), mas o filme vai um pouco além. Através do contraste, ele se propõe a uma constante desconstrução do que se poderia esperar. No prólogo, a sequência natural dos acontecimentos é frustrada com alguma surpresa. Também surpreende tratar-se de um filme baseado em fatos, o que, todavia, é satirizado pela própria obra através de uma citação sarcástica no início. A despeito da seriedade contextual – um urso que se torna perigo para a vida de todos por ter se tornado agressivo em razão da ingestão de cocaína -, as personagens são colocadas como alheias a esta mesma seriedade (Liz e Peter falam de aleatoriedades, ignorando a presença de Sari; Stache conta a sua história de vida apesar de um primeiro contato ruim com Daveed).
O próprio urso, que deveria ser assustador, eventualmente aparece com um olhar de Paddington (olhando para uma borboleta, por exemplo), fofura que contradiz sua conduta de decepar membros humanos. No entanto, a maior ferramenta de desconstrução empregada por Banks está na trilha musical, dado que, não raras vezes, ao invés de ampliar a tensão do terror, surge uma canção para ironizar a atmosfera aterrorizadora (como quando toca “Just can’t get enough”, de Depeche Mode).
Do ponto de vista textual, o trabalho de Jimmy Warden é de um roteiro com falhas de fácil percepção, que, porém, não elidem a ideia governante. “O urso do pó branco” é um filme sobre as consequências sofridas por aqueles que se arriscam e ignoram regras para saciar vontades: as crianças que querem ir à cachoeira de qualquer jeito, os traficantes que só pensam em reaver a droga, a guarda florestal que se exibe para o seu interesse romântico, os jovens que cometem pequenos delitos e o detetive que ultrapassa sua região de atuação. De alguma forma, quase todas as personagens fazem algo que não deveriam e por isso têm um destino ruim.
Em outras palavras, há alguma substância, ainda que sem grande profundidade, no roteiro de Warden. Entretanto, o script extrapola o limite de personagens que deveria ter. Para além da piada com seus nomes, o casal do início, interpretado por Kristofer Hivju e Hannah Hoekstra, é completamente inútil. Dee Dee (Brooklynn Prince) e Henry (Christian Convery) funcionam muito bem juntos, mas se tornam desinteressantes quando Sari (Keri Russell) intervém. Bob (Isiah Whitlock Jr.) tem potencial, mas é subutilizado. Peter tem função meramente instrumental, como interesse de Liz, mas é irrelevante do ponto de vista autônomo – um desperdício de Jesse Tyler Ferguson, que contracenou com Banks em “Modern family”. Não obstante, as demais personagens são hilárias. Margo Martindale tem em Liz uma vaidosa guarda florestal cujas frases de efeito ditas com seriedade enfatizam o quão engraçadamente patética ela é. Stache (Aaron Holliday) e Vest (J. B. Moore) são engraçados, porém ofuscados: Moore porque interage com ninguém menos que Martindale; Holliday porque seus parceiros de cena, Eddie (Alden Ehrenreich) e Daveed (O’Shea Jackson Jr.), são os melhores do filme. Ehrenreich parece ter nascido para isso, pois compreende perfeitamente que Eddie precisa ser forçado, e o jeito “canastrão” do ator se encaixa como uma luva para isto (a cena em que toca “On the wings of love”, de Jeffrey Osborne, e a que o urso se aproxima de Eddie, são piadas excelentes).
Alden Ehrenreich converge com a troça que Elizabeth Banks elabora a partir de um evento real. A cineasta dá várias demonstrações de que não tem receio da galhofa, seja pelo uso do CGI fajuto, seja pelo urso que nunca parece real (os planos-detalhe de sua pata são extremamente falsos). Um urso sob efeito de cocaína pode ser aterrorizador, mas melhor se unir o lado amedrontador a uma zombaria descompromissada e verdadeiramente engraçada.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.