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“O ÚLTIMO PUB” – Os de baixo

A arte não possui funções específicas a priori. Ela pode divertir, chocar, incentivar à reflexão, fazer uma crítica social, proporcionar uma sensação particular…, mas nunca, necessariamente, deve ser obrigada a fazer qualquer uma dessas possibilidades. É uma atividade humana que se basta em si mesma, sendo uma necessidade desde tempos imemoriais e uma experiência sensorial. No caso do cinema de Ken Loach, a escolha é analisar criticamente as contradições do capitalismo na perspectiva das classes sociais marginalizadas e exploradas. Em sua carreira, alguma nova dimensão é trabalhada dentro do tema geral a cada novo filme e não é diferente com O ÚLTIMO PUB.

(© Synapse Distribution / Divulgação)

Embora o capitalismo possa ser novamente o alvo das discussões do cineasta, o olhar ganha outras peculiaridades ao acompanhar a história de TJ Ballantyne, dono de um pub na Inglaterra. Ele sofre o risco de ter que fechar o estabelecimento devido à crise econômica na região e à exploração de grandes empresas. Nesse momento, um grupo de refugiados sírios chega ao local e é discriminado por alguns moradores. No entanto, Ballantyne tem outra postura ao conhecer Yara, uma jovem que tem uma máquina fotográfica, e desenvolve uma amizade com ela que altera as relações no bairro.

Desigualdades sociais, neoliberalismo, precarização do trabalho e desunião ou união de classe são alguns aspectos já desenvolvidos por Ken Loach em filmes como “Ventos de liberdade“, “Eu, Daniel Blake” e “Kes” e “Você não estava aqui“. Em sua obra mais recente, tais temáticas continuam presente e são enxergadas à luz também da questão dos refugiados na Europa e da xenofobia. Logo, o roteiro escrito pelo próprio diretor em colaboração com Paul Laverty retrata conflitos próprios do tempo presente, como a opressão do capital sobre a classe trabalhadora e as consequências das guerras no Oriente Médio. Na narrativa, é possível observar cada elemento citado nos discursos intolerantes direcionados aos recém-chegados: “quem são esses estrangeiros?”, “eles estão roubando nosso lugar”, “é importante ver os antecedentes criminais deles”. A intolerância igualmente se manifesta na violência física, por exemplo, ocorrida contra um adolescente sírio na escola. Como justificativa para tudo isso, a preservação da cultura irlandesa naquela área.

Ken Loach não se satisfaz em se concentrar no preconceito sofrido por aqueles que vem de fora, pois o olhar sobre os de baixo na sociedade precisa ser multifacetado e complexo. Os sírios fogem da guerra, são forçados a se separar de familiares e amigos, passam a viver em uma terra desconhecida e são discriminados. Em paralelo, os irlandeses também enfrentam suas próprias mazelas sociais e econômicas, como a especulação imobiliária, a quebra dos negócios locais e a carência de serviços ou produtos básicos. A convivência de Yara, interpretada por Ebla Mari, e Ballantyne, vivido por Dave Turner, permite partir de certo maniqueísmo e adentrar em relações complexas. O homem ajuda a jovem a consertar a máquina fotográfica e cede um espaço no bar para refeições gratuitas a todos os necessitados, ações vistas por outros cidadãos como absurdas, dignas de algum interesse controverso ou humilhantes para os moradores tradicionais. Já a ajuda oferecida por Yara para uma menina doente leva a um momento em que percebe a miséria de algumas famílias ali.

O maniqueísmo até pode ser sentido pelo maneira como alguns personagens são desenvolvidos. Ainda assim, o diretor faz os espectadores concluírem que os embates dentro da classe trabalhadora teriam explicações profundas, não se resumindo a definir quem seria vilão e mocinho. O paradoxo envolve observar indivíduos que partilham condições sociais semelhantes estarem em conflito e não unidos em luta por melhorias. A resposta é enunciada pelo protagonista através de uma fala que poderia ser a do próprio Ken Loach: a classe dominante coloca os de baixo uns contra os outros e, assim, se perpetua no poder e em uma situação material privilegiada. Essa cena é um exemplo daquilo que mais pode ser criticado no filme, ou seja, a intensificação dos momentos dramáticos para manipular as reações do público. É o que acontece também quando Ballantyne explica a relação com seu bicho de estimação e Yara expõe seus sentimentos diante da ausência do pai. De fato, as sequências carregam na força dos monólogos, mas não exageram na construção formal e podem demonstrar um desabafo do personagem e do realizador (alguém conhecido por seu discurso direto).

No decorrer de sua carreira, Ken Loach fez críticas que não se basearam em uma encenação sutil ou em um desenvolvimento dramático contido. Desde os primeiros minutos, suas narrativas já possuem uma elevada carga dramática enquanto os elementos estilísticos tem uma execução discreta para deixar o conteúdo proposto se sobressair. Em “O último pub“, a construção formal é mais pronunciada, como se pode notar na sobreposição de imagens de fotografias na sequência de abertura. Além de apresentar Yara e um de seus gostos pessoais, é um recurso que estampa em tela registros do ódio preconceituoso dos moradores contra os imigrantes e possibilita dar um toque documental aos acontecimentos como se fosse a captura de instantes reais encontrados no mundo extradiegético. Mais adiante, o uso da câmera ganha contornos leves e amorosos, pois se transforma em símbolo da relação entre pai e filha, em objeto de memória de um passado mais prazeroso.

Apesar do formalismo evidenciado pela montagem de fotografias, a produção se organiza, sobretudo, em torno de uma sensação de realismo crescente a cada nova cena. Por vezes, fica a impressão de que se está diante de um documentário, da aparente representação de uma realidade sem mediações tão fortes. Excetuando-se as ressalvas sempre necessárias acerca do caráter subjetivo de qualquer filme, documental ou não, a escolha pela criação de uma narrativa transparente que não chame muita atenção para as intervenções do cineasta impacta na experiência dos espectadores. Essa transparência contribui para uma imersão profunda que gera identificação com os personagens, afeta as emoções e sugere uma janela aberta para o mundo tal como ele é. São os casos das conversas no pub entre os homens que repudiam a chegada dos sírios e os moradores, estrangeiros e locais, que se alimentam sem preocupações com as diferenças entre eles.

Quem questiona o estilo cênico transparente alegando ser uma construção que aliena o público e influencia as reações espectatoriais sem admitir a subjetividade da narrativa pode pensar de outra forma para “O último pub“. Ken Loach não se esconde por trás das câmeras nem pretende dar um viés de objetividade às imagens. Ele pode suscitar opiniões distintas quando se trata da construção de momentos emocionantes (foi algo natural de acordo com o andamento do filme ou manipulado com estratégias apelativas?), porém se adequam ao efeito geral da história de amizade entre uma jovem síria e um homem de meia idade irlandês. Surpreendendo muitos, o diretor emprega um sentimento otimista e esperançoso que o leva a direcionar o olhar não para os tensos conflitos sociais, mas para a oportunidade de encontrar a união onde poderia ser inesperado. Na sequência final, a linguagem clássica, realista e transparente propõe um recorte específico sobre o mundo, que critica o sistema econômico das elites e vê com bons olhos o espírito coletivo dos de baixo até diante da perda e da tristeza.