“O ÚLTIMO LANCE” – Vida e arte
É extremamente prazeroso para os cinéfilos assistir a um filme que combine de modo tão preciso forma e conteúdo e que possa utilizar elementos cinematográficos, além do roteiro, para contar sua história. O ÚLTIMO LANCE é um exemplo recente, lançado no circuito comercial, da capacidade de articular direção, montagem, trilha sonora, fotografia e design de produção para o estudo de um personagem multifacetado e fascinante.
O personagem em questão é Olavi, um negociante de arte obcecado pelo seu trabalho que vai ficando para trás em razão do crescimento das grandes empresas do ramo. Quando uma obscura pintura de valor ainda desconhecido aparece em um leilão, ele se esforça para fazer um último grande negócio que lhe proporcione a descoberta de uma peça rara e uma ótima venda. Em sua empreitada, Olavi conta com a ajuda do neto que não via desde que se afastou da filha tempos atrás. A oportunidade de se reaproximar da família e ainda prosseguir com sua atividade profissional se torna um desafio capaz de fazer ressurgir angústias e problemas do passado.
Em seus primeiros minutos, a produção já é hábil para descrever o protagonista: sua vida é toda dedicada às artes e ao mundo dos negócios da qual ela faz parte. Ele insiste em continuar trabalhando apesar da falta de dinheiro (por conta da queda das vendas de quadros), das dificuldades de manutenção de sua loja (por conta da impossibilidade de acompanhar as altas ofertas nos leilões em que participa) e das inovações tecnológicas de um novo tempo (a concorrência das lojas online e a rapidez maior de uma pesquisa no Google ao invés daquelas antes feitas em bibliotecas). Quando a pintura de um misterioso homem surge, sua obsessão faz com que ele deseje adquiri-la, averiguar seu valor e descobrir por que não está assinada – durante o percurso, ele se desentende com amigos, parentes e rivais do mercado que o julgam velho e ultrapassado ou não compartilhem seu amor pela arte (como se vê nas sequências em que demonstra insatisfação com as críticas feitas pelo neto e revolta diante das atitudes antiéticas de um diretor de galeria).
A construção e o desenvolvimento de Olavi não dependem apenas do roteiro escrito por Anna Heinämaa, que, por sinal, evita mastigar as informações para o público e investe em lacunas a serem preenchidas por outros recursos narrativos. A direção de Klaus Härö é um deles, por utilizar planos conjunto para atrelar o protagonista ao cenário em que as pinturas estão expostas ou armazenadas, ou closes para expressar variações emocionais presentes no arco do personagem (por exemplo, a ansiedade e o alívio sentidos na ocasião em que se esforça para obter seu desejado quadro). Já a trilha sonora é outra ferramenta a serviço da narrativa, dispensado o sentimentalismo exagerado e a manipulação forçada das emoções dos espectadores – a melodia, por não ser intrusiva, transmite melancolia através de notas pausadas de piano (quando o senhor está pessimista com o futuro da loja) e euforia através de notas dinâmicas (quando o senhor adquiriu a pintura almejada).
A evolução dramática do personagem também estabelecida pelo ritmo da montagem, caracterizada por uma fluidez muito especial que não obedece à clássica relação entre de causa e efeito entre as sequências; na realidade, encadeia diferentes momentos evocativos da condição psicológica de Olavi (como na sequência em que o mundo corre à sua volta enquanto desce um elevador tendo nas mãos o quadro não comprado por um cliente em potencial). Outros pontos importantes de sua trajetória são apresentados pela fotografia, que utiliza cores frias e, ao mesmo tempo, agradáveis nos cômodos enquanto ele sonha em vender a pintura rara e cores escuras e depressivas durante o breve intervalo de tempo de desesperança; e pelo design que usa como metáfora para a morte uma cadeira se movendo até parar e a arrumação das caixas na loja ou na casa como demonstração de seu estado de espírito.
A riqueza dramática do protagonista é ampliada graças à sua interação com sua filha e neto. Essas relações ressaltam a dubiedade de um homem que não sabe mais se admira a arte por prazer estético ou ambição financeira. Qualquer que seja a explicação, ele negligenciou a família por tanto tempo que deixa marcas ainda no presente: neto e avô mal se conhecem, o futuro financeiro do neto corre riscos por responsabilidade de Olavi e a filha ainda carrega traumas decorrentes da ausência do pai – esse último aspecto é anunciado na sua fala “eu já chorei muito por sua culpa. Não quero mais chorar”.
Quando finalmente a razão para a falta da assinatura na pintura se revela, o arco do protagonista se completa, fundindo sua trajetória pessoal e a discussão sobre o valor da arte. Mesmo sendo um momento em que a construção da emoção passa a ser mais explícita, a preparação de toda a narrativa tornou essa mudança de tom orgânica e compatível com os rumos da história. Uma transformação que ensina como a arte não existe somente em função de interesses mercadológicos e fechado em seu próprio universo distante do convívio social. Em “O último lance”, o fascinante e denso estudo de personagem se coloca como um percurso em direção aos ícones culturais, à humildade e à capacidade de transformação do ser humano.
Um resultado de todos os filmes que já viu.