“O ÚLTIMO JOGO” – Cultura futebolística
Filmes sobre futebol enfrentam até hoje os desafios de encenar a dinâmica do esporte e os movimentos dos jogadores. Por isso, as melhores produções sobre o tema são aquelas que buscam aspectos relacionados, sem necessariamente ter que mergulhar nas situações dentro de campo (exemplos de “Heleno“, “À procura de Eric” e “Maldito futebol clube“). Abordagem semelhante é feita em O ÚLTIMO JOGO, ao dar menos tempo de tela aos jogos em si e mais espaço a uma cultura popular futebolística que se forma nos rincões do território nacional.
O mote fundamental para esses costumes é a rivalidade ferrenha entre dois vilarejos separados por 9 km. Do lado brasileiro, Belezura é uma cidade movida pelos empregos na indústria de móveis; do lado argentino, Guapa é o povoado que abriga a matriz da empresa. Quando a filial brasileira está prestes a fechar, a tradição da partida de futebol entre as duas cidades também se aproxima do fim, o que aumenta a rivalidade para o último jogo entre elas. Para vencer, todos estão dispostos a qualquer sacrifício.
Mesmo tendo uma proposta convidativa, a narrativa começa apática carecendo de maior vínculo emocional com o público. Isso ocorre por conta do elenco principal que, a princípio, não seria tão envolvente: Califórnia é inexpressivo ao se interessar cada vez mais por poesia e ter preguiça de treinar; Arlindo é um técnico argentino que treina a equipe brasileira e parece deslocado pela forma como se relaciona com o esporte; e Expedito é o recém-chegado à Belezura cheio de habilidades de embaixadinha, mas aparentemente sem tantas camadas. Além disso, se o diretor Roberto Studart encena a primeira partida sem a preocupação de torná-la realista (o aspecto lúdico do jogo transparece nos movimentos criativos dos personagens com a bola e dialoga com o desenvolvimento da história), o mesmo não acontece com a maneira que o cineasta insere o futebol no cotidiano do local – de início, não é tão perceptível a importância que o roteiro dá ao esporte na vida daqueles habitantes.
Roberto Studart trabalha seu estilo na adaptação do livro “El fantasista“, escrito por Hermán Rivera Letelier, e não necessariamente segue à risca o material fonte. Ele aproveita sua experiência como documentarista (foi responsável por “Mad dogs” e “Pra lá do mundo“) para criar um universo que parece ser realista, porém se abre cada vez mais para o fantástico. Esse realismo acompanha o primeiro ato, quando Expedito chega com sua esposa à Belezura, demonstra intimidade com a bola e precisa ser convencido a participar da partida como um reforço para os brasileiros. Contudo, a sobriedade dos cenários, da fotografia e da interação dos personagens deixa a narrativa morna, com um impacto dramático limitado e um ritmo oscilante – há um descompasso inicial entre as situações que flertam com o absurdo e a construção estética contida que leva tempo até conquistar o espectador.
Isso muda a partir do momento em que a produção investe mais no surrealismo dos acontecimentos, como se as ações se encaixassem no realismo fantástico. A narrativa ganha ritmo e o envolvimento com os personagens e os conflitos cresce através das escolhas não realistas do cineasta para mostrar como Expedito continua no vilarejo: a cada nova sequência, a escala de nonsense se amplia porque os moradores locais criam planos mirabolantes, mentem e obrigam o visitante a jogar (a suposta morte de um ídolo do homem no local a proibição de atravessar a fronteira são os pontos altos dessa estratégia). Em contrapartida, os obstáculos impostos aos brasileiros também seguem o princípio do absurdo consciente, já que os argentinos manipulam o estado de saúde de um jogador adversário para conseguirem vantagens e Expedito sofre com um problema bastante incomum para atuar em campo.
Utilizando as mudanças no estilo da trama, a obra consegue tornar o futebol concreto na vida dos habitantes de Belezura. É possível notar a importância do esporte através da sua penetração na dinâmica do lugar: o fechamento da indústria aquece as rivalidades entre Brasil e Argentina; a fronteira entre os dois países é demarcada por um espaço expressivo visualmente e simbólico para a dramaturgia; e vários moradores se envolvem com a preparação para o jogo, como o delegado que ajuda a impedir a saída de Expedito, o dono do restaurante que não serve bebidas aos jogadores na véspera, o médico locutor que se entrega de corpo e alma à narração e o menino que ouve rumores sobre uma trapaça dos argentinos. Assim, o humor se instala gradualmente e cria uma atmosfera continuada de diversão e emoção, algo que define a relação dos brasileiros com o futebol.
Nesse sentido, a divisão da narrativa nos dias da semana até chegar ao domingo em que o último jogo acontece demonstra seu valor. Embora os primeiros dias desse percurso sejam apáticos e menos significativos, a situação se transforma no clímax com o confronto entre brasileiros e argentinos. E se trata de uma transformação positiva para o filme, já que Roberto Studart direciona a câmera para a intensidade emocional dessa rivalidade nas torcidas, nos jogadores e no narrador (uma representação poderosa do locutor espirituoso que combina excentricidade e comentários inesperados para a ocasião). Logo, o interesse não é tanto as jogadas do futebol, mas como ele solidifica a coesão de um grupo e dá sentido às vidas de quem enxerga além das quatro linhas.
Um resultado de todos os filmes que já viu.