“O ÚLTIMO DUELO” (2021) – A minha verdade
O que “Ponto de vista” (2008), “Garota exemplar” (2014) e “Dois lados do amor” (2015) têm em comum com O ÚLTIMO DUELO (2021)? Dentre várias outras obras, os quatro filmes se utilizam do que ficou conhecido como “efeito rashomon”, expressão que consagra o ditado segundo o qual “todos os fatos têm três versões: a sua, a minha e a verdadeira” (com algumas variações textuais). Não necessariamente os quatro se utilizam bem desse recurso.
No fim do século XIV, o escudeiro Jacques le Gris é desafiado pelo cavaleiro Jean de Carrouges a um duelo mortal por ter cometido um crime contra ele. Marcada a batalha pelo Rei da França, Carlos VI, a verdade será extraída apenas com o fim da luta. Quem vencer estará com a razão.
Após o prólogo in media res, mostrando os primeiros instantes do duelo, o filme se propõe a abordar o que lhe é central: a verdade. O roteiro escrito por Nicole Holofcener, Ben Affleck e Matt Damon (os dois últimos também atuam no longa), baseado no livro de Eric Jager (que se inspirou em eventos reais), é subdividido em três capítulos, nomeados “a verdade segundo…” (de acordo com três personagens distintas). É esse, pois, o efeito rashomon: a mesma estória narrada a partir de diferentes pontos de vista, inclusive contraditórios, cujo final não é necessariamente conclusivo. O nome desse efeito se deve ao clássico “Rashomon” (1950), de Kurosawa, embora algo semelhante possa ser visto em “Cidadão Kane”, que lhe é anterior (1941) – neste caso, a investigação envolve entrevistas de pessoas próximas a Kane, com flashbacks em um mosaico que tenta levar a uma conclusão (cada entrevistado fornece um olhar diferente).
A ideia, ainda que não original (até mesmo o título é despido de originalidade, já que existe um western homônimo de 1952), é promissora, inclusive por contar com a direção do aclamado Ridley Scott. Contudo, “O último duelo” não está entre os melhores do seu currículo. Após uma ambientação necessária no prólogo, com um design de produção compatível com a estética da época (segunda metade do século XIV), o primeiro capítulo tem uma voracidade assustadora. Mesmo tendo bons trabalhos no currículo, como “O jardineiro fiel” e “O leitor”, a montadora Claire Simpson desenvolve a narrativa com cortes secos, fazendo com que o salto abrupto entre as cenas torne difícil a sua absorção. A intenção é claramente estabelecer premissas, não propriamente uma narrativa: Jean (Damon, pouco inspirado, mas bem maquiado) salva a vida de Jacques e o considera bom amigo, porém as circunstâncias o levam a desconfiar que é invejado por ele, para depois se tornarem inimigos enquanto ele (Jean) se sente injustiçado, feliz no casamento e bem-sucedido nas batalhas. A sequência de cenas ocorre em um atropelo por quarenta e cinco minutos, sem organicidade, mas doses grosseiras de informação.
No segundo capítulo (de outros quarenta e cinco minutos) começa o efeito rashomon, quando algumas cenas se repetem, sob outro ponto de vista. Nesse caso, por vezes é o roteiro que traz novidades (falas que não apareceram antes), em outras, a filmagem é distinta (a cena do beijo é o melhor exemplo). A linha narrativa explosiva do primeiro capítulo é então preenchida no segundo, inclusive pela adição de cenas que, na prática, suprem lacunas que agregam à compreensão da própria narrativa (para uma aproximação da verdade). Nessa parte, há maior destaque para o conde Pierre (Affleck, loiro, magro e jovial) e para o escudeiro le Gris, este interpretado por Adam Driver, claramente se esforçando para exibir a ambiguidade da personagem. O perfil traçado sobre as personagens se altera um pouco, o que é resultado do efeito rashomon, porém o filme não é eficaz no estímulo de suas duas reflexões principais.
A primeira delas é relativa à verdade, reforçando o ditado acima mencionado. Um mesmo evento pode ter inúmeros pontos de vista, isso sem contar os eventos precedentes que a ele levaram e que podem ajudar na sua explicação. O estabelecimento dessa ideia quase não é prejudicado pela montagem e pelo ritmo frenético, porém Scott não é criativo no que se refere à provocação do público. Salvo pela estrutura narrativa e pela ênfase visual da palavra “verdade”, pouco o filme incentiva a pensar. Parte desse resultado reside na segunda reflexão, que aqui não será aprofundada para evitar spoilers, mas que tem força suficiente para ofuscar a primeira. Resumidamente, o trato dado na época ao crime supostamente cometido por Jacques chama a atenção, o que, por outro lado, é minado pela incapacidade do escudeiro em convencer a plateia sobre o seu ponto de vista.
A cena da confissão de Jacques, assim como um diálogo entre Marguerite (Jodie Comer, em atuação, no máximo, mediana) e Nicole (Harriet Walter, uma das melhores, mesmo aparecendo pouco), ajudam na interpretação da verdade (o que no longa é fundamental), sem dúvida. Entretanto, tendo cerca de duas horas e meia, a sensação que fica é a de um filme desnecessariamente acelerado (até mesmo o clímax exagera nos cortes). Depois de cenas de alguns segundos, um diálogo mais longo entre Marguerite e Jean se torna um respiro – assim como ocorre quando o filme acaba. E essa é a minha verdade.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.