“O TRAIDOR” – Organizar o tempo
Filmes e séries sobre máfia costumam estar entre os maiores sucessos de público e crítica, como “O poderoso chefão” (clique aqui para ler a nossa crítica) e “A família Soprano”. Certamente O TRAIDOR está distante de obras-primas como essas, aproximando-se da qualidade, por exemplo, da série “Suburra: sangue em Roma” – ou seja, no máximo, medíocre. Ao invés de se assumir como ficção baseada em fatos, tal qual “O irlandês” (clique aqui para ler a nossa crítica), o longa flerta com o documental e tenta resumir, sem muita organização, um interregno grande demais.
Diante dos novos rumos adotados pela organização, com o incremento do tráfico de heroína, Tommaso “Masino” Buscetta decide sair da Itália, afastar-se da máfia e aproveitar uma vida tranquila no Brasil. Considerando uma sequência de assassinatos e sua extradição decorrente de uma grande operação policial, Masino aceita colaborar com as autoridades e revelar o que sabe.
O longa de Marco Bellocchio tem os elementos principais das obras sobre o crime organizado: disputas pelo poder, relativização de valores morais e muito sangue. Interpretado com vigor por Pierfrancesco Favino, Masino convence em seu discurso de que não tinha interesse no comando, diversamente daquele que seria o vilão, Totò Riina (Nicola Cali). Um primeiro problema surge quando o grande vilão – aquele que deturpou os princípios da Casa Nostra – fica em segundo plano e aparece apenas no final. Em seu lugar, está um vilão mais próximo de Masino, Pippo Calò, vivido por um ótimo Fabrizio Ferracane. O backstory entre Calò e Buscetta quase não é apresentado, porém o presente diegético interessa ao mostrar o quão diferentes eles são dos demais mafiosos: enquanto muitos se desesperam, Calò se mostra sempre calmo, ao passo que Buscetta, mesmo réu, se apresenta com alguma imponência, como se fosse superior aos outros (afinal, colaborou com a Justiça).
Ainda que a importância da liderança da Casa Nostra seja mencionada, na figura de Riina, a interação entre Calò e Buscetta ofusca a questão do poder – não pelo vínculo pretérito entre eles, que, como dito, não é bem explicado, mas porque Favino e Ferracane encantam nas cenas em que as personagens se alfinetam (o sarcasmo do segundo é bem divertido). Outro que divide com o protagonista boas cenas é o juiz Giovanni Falcone, vivido por um razoável Fausto Russo Alesi. Chama a atenção o modo como o magistrado e o (ex-)mafioso criam um vínculo de amizade, porém essa parte é tão resumida (basicamente, a cena do cigarro, a do café e a que ocorre na cela) que essa amizade convence apenas pela atuação de seus intérpretes, não pelo roteiro, escrito por Bellocchio juntamente com Valia Santella, Ludovica Rampoldi, Francesco Piccolo (e que contou com Francesco La Licata como colaborador e com a contribuição, na parte brasileira, de Felipe Sholl). O texto não cria propriamente uma narrativa e não chega a ter personagens, limitando-se a recortes de cenas boas (e outras não tão boas) que dão uma noção sobre a trajetória de Masino após a vinda ao Brasil.
Existe na película uma preocupação em mostrar que os mafiosos são mergulhados em uma hipocrisia estrutural, como, por exemplo, em comemorações com “Viva Santa Rosália!” e em falas como “a família, para mim, é sagrada”. Esta talvez seja a melhor parte do longa, do ponto de vista do seu conteúdo, quando Masino é retratado como um homem que realmente acredita ser fiel a certos valores e que a delação representa essa mesma fidelidade. O relativismo moral é instigante e é o mais profundo que o script consegue ir. No mais, o longa é recheado de metáforas visuais pobres, como a sombra de grades na areia da praia na cena em que Masino busca Benedetto (Gabriele Cicirello), simbolizando a fuga de um possível encarceramento futuro, e as imagens de ratos, representando a delação. O diretor se empolga e coloca desnecessárias imagens reais de noticiários e de animais (com um simbolismo quase infantil), querendo se aproximar ao documental. Não se questiona a fidelidade aos fatos, porém o ímpeto dessa fidelidade fica um pouco confuso na medida em que o contexto geral da Casa Nostra é abreviado ao máximo – além de contraditório com as (mais uma vez, desnecessárias) cenas de alucinação.
“O traidor” tem momentos ótimos, sobretudo nas cenas de julgamento e mesmo na contagem de tempo para os assassinatos. Sua escolha musical, geralmente, é acertada, principalmente com “Historia de un amor” (que não faz muito sentido na primeira vez, mas depois é bem justificada) e “Va pensiero (chorus of the hebrew slaves)”, do ato 3 da ópera Nabucco, de Verdi. O clichê de “L’italiano”, de Toto Cutugno, pode ser ignorado, já que os defeitos do filme não estão na trilha musical, tampouco nos seus fracos efeitos visuais (a cena de explosão é bem filmada, mas os efeitos são deploráveis). Seu grande erro está na tentativa de resumir muitos acontecimentos em duas horas e meia, e, o que é pior, não ser muito coeso em sua narrativa. Pouco se sabe sobre a vida de Masino como mafioso, sobre sua vida com a esposa (Maria Fernanda Cândido, com poucas cenas) e sobre o conteúdo das suas delações. Ao optar pela horizontalidade (inclusive um falso final, pois há muito a acontecer depois da sentença), o filme fica superficial e perde muito em emoção. Com mais organização e um lapso temporal mais sucinto, o resultado seria melhor.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.