“O TESOURO DO PEQUENO NICOLAU” – Aventura de idealizada pureza
Nicolau é o famoso protagonista de uma série de livros infanto-juvenis franceses. Escrito por René Goscinny e ilustrada por Jean -Jacques Sempé, o conjunto de cinco livros retrata as peripécias de um menino e seus amigos na França da década de 1950. Em 2009 e em 2014, foram feitas as primeiras adaptações para o cinema sob os títulos “O pequeno Nicolau” e “As férias do pequeno Nicolau“. E no fim de 2022, chega ao Brasil o terceiro filme intitulado O TESOURO DO PEQUENO NICOLAU conservando a a ideia de ter uma aventura contada sob o viés da ingenuidade mágica da infância.
O mundo do pequeno Nicolau é ameno, jovial, radiante e seguro para ele. Divide seu tempo entre os estudos na escola, a vida com os pais em casa e as brincadeiras com um grupo de amigos inseparáveis que se chama Os Invencíveis. A realidade do menino vira de ponta cabeça quando o pai recebe uma promoção na empresa onde trabalha para se tornar diretor de uma das recém-adquiridas filiais. Isso porque a notícia inclui também ter que se mudar para o sul da França e se afastar dos colegas. A partir daí, os garotos tentam encontrar uma maneira de evitar essa separação.
Desde a abertura, o público já é apresentado a uma história que encara os acontecimentos com a pureza da infância e a personagens que dão sentido às suas vidas sob uma perspectiva inocente. A partida de futebol no terreno baldio que faz a bola ser atirada para o jardim da casa de uma senhora com um cão “ameaçador” é o pretexto para introduzir os personagens juvenis. Cada um tem alguma característica que os define, por mais que algumas possas ser caricaturais: o líder do grupo, o gordinho sempre com fome, o mais veloz de todos, o nerd submisso às autoridades, o valentão bom de boxe, o riquinho sempre interessado em dinheiro, o filho de um guarda de trânsito e o menino com dificuldades cognitivas. A dinâmica entre eles indica que toda a trama será tratada com simplicidade tamanha que, até o que poderia ser ameaçador, não é perigoso como se esperava, já que a senhora e seu cachorro não fazem nada de mal para os meninos. Além disso, o tom lúdico fica evidente nos créditos iniciais animados em folha de papel que narram algumas aventuras de Os Invencíveis.
A entrada do conflito central não gera grandes transformações no estilo da narrativa, pois a singeleza cômica ainda predomina nas reações das pessoas dentro deste universo. Após saber que o pai recebeu a proposta de se tornar diretor de uma nova empresa comprada por seu chefe no sul do país, Nicolau reage como qualquer criança naquelas circunstâncias imaginando estar longe dos melhores amigos. Ainda assim, é a comédia que marca o arco do protagonista e de seus companheiros, pois a saída encontrada por eles é buscar um meio de evitar a promoção ou de fazer o homem não precisar aceitar a oferta. Este humor puro é tão contagiante que envolve também os adultos, em especial o pai de Nicolau e a questão sobre qual é exatamente seu trabalho. O diretor Julien Rappeneau adota uma forma bem clássica de contar a história, mas trabalha a repetição como recurso cômico. Em diversos momentos, são feitas piadas sobre a profissão dele, a importância de sua função e sua própria competência para um cargo mais alto, que incluem o tema da redação do filho e as visitas do chefe ao escritório.
Todas as ideias que os amigos têm para o impasse traduzem uma visão de mundo sem qualquer malícia e terminam com resultados inesperadamente desvantajosos para eles. Atrapalhar a reunião de trabalho do pai trocando um material importante, na verdade, o ajuda ainda mais e buscar um antigo tesouro possivelmente escondido na cidade provoca apenas a descoberta de objetos inúteis e confusões com os adultos. Aos poucos, então, os personagens vivenciam aventuras que reforçam os laços de amizade e desenvolvem a dinâmica entre eles a partir da repetição das características de muitos dos meninos. Ao longo dessas sequências, o filme promove a sutil imersão do espectador na França da década de 1950 através do design de produção criado por Marie Cheminal. Reconstrói-se a capital francesa naquela época através da utilização de cores primárias intensas colocadas nos figurinos, cenários e objetos cênicos, dando à cidade uma áurea de idealização especial que se articula ao olhar simples das crianças.
Em paralelo ao arco principal, o filme também cria algumas subtramas contagiadas pelo humor geral da narrativa. Entre elas, estão: os desentendimentos do casal principal com relação às tarefas da mudança; um vizinho fofoqueiro sempre interessado nas novidades na residência de Nicolau; a rivalidade entre dois executivos da empresa em uma partida de tênis que coloca a mãe de Nicolau dentro da disputa; uma professora gentil questionada por supostamente não conseguir disciplinar sua turma; um inspetor às voltas com os seguidos roubos de seus apitos no pátio da escola; e o diretor viciado em fazer trocadilhos não tão engraçados. Logo, a produção adquire um caráter episódico que não é, necessariamente, problemático porque esta escolha do roteiro de Julien Rappeneau e Mathias Gavarry ajuda a compor um mundo diegético particular que remete à realidade, mas se baseia na imaginação ficcional. Apesar disso, como qualquer obra nesses moldes, algumas subtramas têm mais força cômica do que outras, em especial aquelas que estão fora da escola e apresentam um estilo curiosamente nonsense.
No decorrer dos atos, o tesouro citado pelo título assume uma conotação literal na aventura em que os amigos se unem para ajudar Nicolau. Entretanto, o filme está mais interessado em dar um sentido simbólico à palavra. É verdade que tantas subtramas, nem todas tão atrativas, postergam por muito tempo a revelação direta da mensagem por trás da aventura e deixam os meninos muitas vezes em uma posição secundária. Todos os arcos são concluídos, alguns mais satisfatoriamente do que outros (afinal, certos coadjuvantes não precisavam de um fechamento convencional por serem simplesmente recursos cômicos), e a comédia ganha toques um pouco mais dramáticos a respeito do valor da amizade. A convergência de duas cenas sobre um eclipse em tempos diferentes retrata frontalmente o que “O tesouro do pequeno Nicolau” quer passar. Pode não ser uma mensagem original, porém faz parte de uma produção simpática que conforta seu público infanto-juvenil durante sua projeção.
Um resultado de todos os filmes que já viu.