“O TELEFONE PRETO” – Concretização incompleta
Vivemos em um tempo em que a cinefilia e os fãs de terror parecem estar mergulhados em um duelo cinematográfico? Prefere a A24 ou a Blumhouse? Qual das duas produtoras é melhor? Nas discussões, as empresas são tratadas como times de futebol que precisariam de torcida e o controverso “pós-terror” ou “horror elevado” é contraposto a filmes de terror mais “comerciais”. Melhor do que dar um veredito em uma suposta disputa seria refletir se há diferenças significativas entre os projetos das produtoras. E, nesse sentido, o lançamento mais recente da Blumhouse pode ajudar na tarefa porque O TELEFONE PRETO encapsula características da empresa em suas qualidades e problemas.
A produção é um misto de história de serial killer, confinamento forçado e investigação com toques sobrenaturais, inspirada no conto homônimo escrito por Joe Hill. Em uma cidade norte-americana na década de 1970, Finney Shaw é um menino tímido e inteligente de 13 anos que é perseguido pelos valentões da escola. Em uma tarde, ele é sequestrado por um assassino sádico e preso em um porão à prova de som, onde gritar é inútil. Quando um telefone desconectado na parede começa a tocar, o garoto ouve as vozes das vítimas anteriores. Todas elas estão dispostas a ajudá-lo a não ter um fim trágico e violento.
Diferentemente da A24, interessada em moldar seus projetos de terror com outros gêneros (especialmente o drama) como se vê, por exemplo “A bruxa” e “Hereditário“, a Blumhouse trabalha o terror de forma mais evidente sem depender tanto de outras abordagens. Então, o retorno de Scott Derrickson ao terror (diretor responsável anteriormente por “A entidade” e “O exorcismo de Emily Rose“) ambienta a atmosfera sob o signo do medo e do flerte entre realismo e fantasia. A cada novo desaparecimento, policiais circulam fazendo interrogatórios na escola, familiares publicam cartazes com as fotografias dos desaparecidos, a aflição de famílias diante do risco de perder um filho e sequências de imagens com uma granulação típica de um registro caseiro conferem um tom realista ao primeiro ato. Ao mesmo tempo, tudo que cerca o vilão remete a um pesadelo sobrenatural: o codinome Grabber para o sequestrador, o medo do protagonista de dizer o nome como se invocasse sua presença, as máscaras demoníacas com chifres e sorrisos assustadores e a iluminação dos ataques com a escuridão gradual do plano.
Mesmo quando a apresentação do ambiente focaliza os personagens infantis, o entrecruzamento entre realismo e fantasia persiste. A princípio, o cenário em questão soa derivativo ao trazer elementos já bastante utilizados em outras obras e sem maiores particularidades, como o pai alcoólatra que agride os filhos, o jovem tímido que não consegue expressar seu interesse por uma colega de sala e os valentões da escola que praticam bullying e perseguem determinados alunos. É curioso que esta ambientação ainda possui momentos cômicos e fraternos entre os irmãos Finney e Gwen, motivados principalmente pela união entre eles para cuidar do pai e as provocações inocentes de um para o outro. Por um lado, a integração entre o contexto infantil e violento da trama orienta o arco narrativo do protagonista voltado para a conquista de autoconfiança para lidar com diversos desafios. Por outro lado, a mesma integração coloca outra dimensão fantástica na narrativa ao sugerir que Gwen pode ter herdado da mãe habilidades extrassensoriais em seus sonhos, algo que, mais tarde, pode ajudar a explicar as ligações incomuns que o irmão recebe no cativeiro.
Então, o primeiro ato cria expectativas para a presença mais efetiva de Grabber. No entanto, as promessas a respeito da violência e do sadismo do assassino não se confirmam ou não encontram um clímax dramático contundente. Por várias razões, a ameaça do personagem é sugerida sem que seja aproveitada ao máximo, nem mesmo quando suas primeiras aparições despertam a curiosidade com relação a sua psique por conta dos trejeitos físicos e das variações do registro vocal de Ethan Hawke – o próprio ator parece desperdiçado no segundo ato, no segmento da narrativa em que aprisiona Finney e tem embates psicológicos com o menino. Em certa medida, os jogos psicológicos soam muito tímidos e sem a capacidade de afetar o protagonista e o público. Além disso, o perigo físico que o vilão poderia representar através de atos violentos é adiado e, quando enfim chega, não proporciona tantos efeitos assustadores. E a mitologia do antagonista é mais um aspecto desperdiçado, jamais trabalhando, por exemplo, seu fascínio doentio por máscaras aterradoras (a cena em que Grabber se desespera ao ter sua máscara retirada tem menos impacto do que poderia se Scott Derrickson tivesse trabalhado a questão).
Outro elemento que tem a apresentação mais atraente do que o desenvolvimento é o confinamento do protagonista no porão. O diretor já havia plantado algumas pistas do que viria a ocorrer com o sequestro do jovem, como as citações a “O massacre da serra elétrica” e a um filme de terror exibido na televisão. Preso no cativeiro, Finney se depara com as estranhas ligações por um telefone preto teoricamente defeituoso das vítimas anteriores e com seu poder de se comunicar com elas. A partir daí, a narrativa abraça a trama de sobrevivência e tentativa de fuga, pois a comunicação com os espíritos o faz escapar de algumas armadilhas do serial killer e testar alguns planos para deixar o local. São momentos em que a Blumhouse mostra outra diferença em relação a A24, especificamente a incorporação evidente do jump scare e não o uso de recursos mais psicológicos. Alguns jump scares funcionam, como a primeira aparição de uma das vítimas, mas a sensação é que algo ainda falta. Falta se entregar mais à tensão do sobrenatural ou fazê-lo interagir mais com os confrontos com o vilão, afinal a sensação de que os espíritos seriam a grande ameaça é ilusória, apesar de a narrativa quase sugerir isso em alguns instantes.
A sensação de que algo está faltando ganha corpo, principalmente, pelo que acontece fora do porão. Enquanto os policiais tentam esclarecer o que acontece com as crianças, Gwen tenta utilizar seus sonhos para descobrir alguma pista do paradeiro do irmão. Nesse núcleo, a atuação de Madeleine McGraw se destaca a ponto de, por vezes, superar o protagonismo de Mason Thames, embora o ator estreante consiga oferecer momentos interessantes de embate físico com Grabber. A atriz cria uma personagem ao mesmo tempo confrontadora e cômica, responsável por cenas de alívio cômico eficiente, como o confronto com os policiais durante um interrogatório e uma inusitada oração a Jesus. Ainda assim, a frustração que preenche a narrativa pode vir do fato de que a ideia de combinar realismo e fantasia é encenada de modo tímido, deixando de explorar possibilidades poderosas. Se as visões que a garota possui em sonho são filmadas com uma granulação que remete aos registros caseiros de uma família e a uma certa dose de realismo, a mise-en-scène mais potente é aquela que mistura seus sonhos e as ligações sobrenaturais de Finney. Porém, esta escolha aparece em uma passagem isolada do filme e não é utilizada novamente ou retrabalhada com outras características.
Longe de querer determinar um suposto vencedor para uma eventual disputa entre A24 e Blumhouse (algo, inclusive, sem função alguma), esta reflexão pode ajudar a perceber mais claramente as escolhas criativas dos projetos produzidos pelas duas empresas. E, nesse sentido, a Blumhouse já teve filmes que conseguiram utilizar de maneira mais expressiva as convenções do gênero terror dentro de opções criativas de um cinema mais comercial. Em “O telefone preto“, a ambientação e a preparação dos conflitos superam a concretização da dramaturgia e o clímax. A combinação entre o realismo das situações violentas (sequestro de crianças e assassinatos sem solução imediata) e fantasia dos personagens envolvidos (a aura sobrenatural do assassino e as habilidades dos protagonistas) não se expande para uma encenação criativa ou expressiva. Assim, o clímax acontece, há um grau de violência que acertadamente surpreende pelos rumos escolhidos, mas seu efeito não perdura por tanto com o espectador. Após isso, resta somente o fechamento de um arco narrativo que não parecia tão essencial com alguma dose de ironia que deixa o impacto do entrecruzamento entre realismo e fantasia aquém.
Um resultado de todos os filmes que já viu.