“O SOM DO SILÊNCIO” – O protagonista errado
Aos sete anos de idade, Ray Charles ficou totalmente cego. Ainda na infância, precisou superar inúmeras barreiras, conseguindo se tornar um dos maiores ícones da História da música. O SOM DO SILÊNCIO não é como a cinebiografia de “Ray” porque não é uma história de superação. Mas também não é (puramente) uma história de sofrimento.
Ruben é um baterista de uma banda de heavy metal. Repentina e vertiginosamente, ele começa a perder a sua audição. O desespero pela nova condição pode reaproximá-lo às drogas e provavelmente o afastará da música; dois possíveis caminhos que ele se recusa a percorrer.
Riz Ahmed faz um bom trabalho na pele do protagonista, principalmente considerando a proposta. Ruben se preocupa com a saúde visível (faz flexões e abdominais, prepara um shake nutritivo, ignorando o gosto etc.), entrando em aparente contradição quando se trata da saúde (intra-)auricular. Não se trata, todavia, de uma verdadeira contradição: a recusa em aceitar as orientações médicas é resultado da sua própria personalidade.
Não se trata de um protagonista resiliente, mas inconformado. Na primeira conversa com um médico, o que lhe interessa é apenas a solução, um “Santo Graal” que pode ser caro, mas deve ser imediato. Para Ruben, não há tempo a ser perdido – por isso que, quando vai falar com Joe, avisa Lou que “vai ser rápido”. É também por isso que, nas primeira aulas de língua de sinais, dá uma risada debochada antes de repetir o sinal do professor. Ele fica com raiva, mas raiva de si mesmo: mói uma eosquinha, quebra objetos do trailer etc..
Perder a audição significa perder o próprio ganha-pão. Mas pode implicar outras perdas, como a sobriedade e a namorada. Olivia Cooke compreende que o papel de Lou é dúbio, pois ela quer ajudar o namorado, mas não consegue – seja lá por que motivo – paralisar a própria vida para aguardá-lo, inerte. Trata-se de uma lacuna em que a sutura do espectador é razoável, ao contrário de verdadeiros furos do roteiro de Darius Marder e Abraham Marder (por exemplo, como Ruben conseguiu dinheiro para viajar?). O arco em que aparece Mathieu Amalric (um desperdício colossal) é exemplo de uma narrativa mal trabalhada, à medida que foge da espinha dorsal da trama.
No design de som, “The sound of metal” (nome original do longa) é muito bom. As contraposições são elaboradas com esmero, notadamente entre o que Ruben toca nos shows (metal), de um lado, e o que ele ouve em casa (jazz), e entre o que ele efetivamente ouve (um tinido) e o que deveria estar ouvindo (na cena do exame). Se a mixagem de som é certeira para conduzir o espectador (quando o protagonista analisa a própria dificuldade auditiva, ou na cena da primeira refeição com o grupo, em que os sons diegéticos são colocados em alto volume), as dualidades se tornam um erro na direção.
Darius Marder tem em seu filme uma única cena vibrante, que é a que Ruben usa um escorregador como percussão junto a uma criança. Na cena do primeiro exame do protagonista, a mudança do ponto de vista é crucial para que o público compreenda a proporção do problema enfrentado por ele. Entretanto, existem várias cenas em que as lacunas não colocam o espectador na posição do herói (se fosse assim, melhor teria sido manter uma uniformidade, como “O filho de Saul”, que verdadeiramente acomoda a plateia em uma posição específica junto ao seu protagonista). Isto é, algumas opções prejudicam à toa o acompanhamento da trama, como na cena em que Lou atende o celular e não explica direito para Ruben o que fará (na prática, não se sabe ao certo os planos dela). O problema não é alternar o ponto de vista, mas fazê-lo, por vezes, sem critério.
A direção de Marder é também pobre em diversos aspectos, como ao utilizar metáforas óbvias (a chuva ou o cigarro) para alguns contextos (de tristeza e tensão, respectivamente). O uso de lente grande-angular no trailer do casal é uma escolha interessante visualmente e que consegue tornar gráficas as diferenças em dois momentos da trama. Usar pouca profundidade de campo na cena da roda de conversação (por linguagem de sinais) é outro exemplo de adequado uso da técnica. Contudo, o filme é superficial e simplório, para não dizer reducionista sobre o tema que aborda, em uma visão praticamente maniqueísta.
Não se pode negar que o resultado final decorre substancialmente do formato da trama. Ruben não é alguém que supera as adversidades, como fez Ray Charles em “Ray”, mas alguém que desconhece por completo o conceito de resignação. O que “O som do silêncio” quer dizer é que nem todo conformismo é negativo, ou que talvez algum grau de conformismo pode ser construtivo. Porém, a ideia está presente apenas em um diálogo, envolvendo a única personagem interessante do longa, Joe. Talvez tenha sido escolhido o protagonista errado.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.