“O SILÊNCIO DOS INOCENTES” – Individualismo utilitarista
Poucos filmes obtiveram o sucesso atingido por O SILÊNCIO DOS INOCENTES. Em termos de premiação, dentre outros feitos, está entre os três únicos vencedores do Oscar nas que são consideradas “categorias principais” (filme, direção, ator, atriz e roteiro) – os outros são “Aconteceu naquela noite” e “Um estranho no ninho”. Aclamado pela crítica e pelo público, extrapolou as fronteiras do audiovisual e se consolidou como fenômeno cultural. Na aparência de uma miscelânea de suspense, drama e terror está uma crítica ao individualismo utilitarista que está impregnado na conduta humana.
O FBI está com dificuldades em descobrir a identidade de Buffalo Bill, um serial killer que sequestra mulheres com sobrepeso para, por razões obscuras, extrair sua pele antes de se desfazer de seus corpos mortos. Clarice Starling está no início da sua carreira, mas seu supervisor, Jack Crawford, a convoca para conversar com Hannibal Lecter, um famoso canibal preso em um manicômio que pode ajudá-los a traçar um perfil psicológico de alguém que se dedica ao homicídio serial. Lecter era psiquiatra antes de praticar crimes, sua inteligência, assim, pode ser tão útil quanto perigosa.
O roteiro de Ted Tally, baseado na obra de Thomas Harris, é de um primor raro. Composto de quatro atos e um falso final, o texto tem alguns plot twists capazes de surpreender mesmo o espectador mais desconfiado. Há uma articulação muito boa, nesse caso, com a montagem de Craig McKay, que faz com que os flashbacks surjam organicamente na narrativa (repentinamente, percebe-se que a cena está no pretérito diegético) e a montagem paralela engenhosamente induza a plateia a conclusões precipitadas (em uma sequência em especial). Um corte seco (embalado por “American girl”, de Tom Petty & The Heartbreakers, uma das poucas exceções à ótima trilha instrumental de Howard Shore) pode ser encarado como jump scare diante da tensão que irriga a trama, mas também existem cenas pacatas e aparentemente irrelevantes (em termos narrativos) que apenas um bom montador não exclui (a que Clarice está no aeroporto e é ultrapassada pelas pessoas que estão próximas, demonstrando seu desânimo).
Jonathan Demme reúne as qualidades técnicas individuais (a trilha e a montagem mencionadas, por exemplo) para obter um resultado sublime. No prólogo, enquanto aparecem os créditos, há muita informação transmitida concomitantemente: Clarice enfrenta um desafio físico intenso (está suada e os exercícios são cansativos), a música transmite uma sensação de drama (o que também existe no script) e a heroína solitária não tem receio de um bosque escurecido pela neblina e pela paisagem outonal. São inúmeras cenas marcantes do longa, algumas delas sutis, outras, nem tanto. No primeiro caso está a que Clarice entra no elevador, ainda nos primeiros minutos: suada e de agasalho cinza, ela destoa completamente dos homenzarrões de vermelho que estão no mesmo local. Há uma rima, inclusiva, com o machismo da força policial que o filme denuncia, algo repetido na funerária, quando Crawford irrita Clarice).
São as cenas escancaradas, contudo, que ficam marcadas com maior facilidade na memória do público. Uma delas, quiçá a mais célebre, é a que Hannibal chega no aeroporto, com o corpo sendo carregado inteiramente preso, com camisa de força e uma espécie de máscara que parece uma focinheira (impedindo-o de praticar um ato canibal). Demme, contudo, tem a sabedoria de compatibilizar a violência gráfica com a respectiva necessidade – assim, o corpo encontrado no Rio Elk não é mostrado senão gradualmente; da mesma forma, a cena mais chocante é indispensável para mostrar que o aparentemente tranquilo Hannibal é extremamente racional e sanguinário. O cineasta faz com que a câmera deslize pelo covil do serial killer buscado pelo FBI (note-se: na ausência de interações entre personagens, apenas para exibir o local) com a mesma facilidade com que o faz nos corredores do Bureau – que esteticamente não são tão diferentes do manicômio visitado por Clarice, ao menos no começo. A câmera subjetiva, usada na perspectiva da protagonista, faz com que o manicômio pareça, além de perigoso (o que é enfatizado pelos alertas expressados pelas autoridades), tenebroso, o que se acentua com o comportamento dos presos (salvo, é claro, o doutor Lecter, que é inegavelmente diferenciado).
No subtexto, a construção das personagens revela que todas elas procuram a satisfação máxima de interesses exclusivamente pessoais. Crawford (Scott Glenn) sabe que a solução do caso será um mérito a ser gozado por si mesmo apenas; Chilton (Anthony Heald), depois de dispensado por Clarice, enxerga nas conversas desta com Hannibal a oportunidade perfeita para se promover às custas alheias. Evidentemente, o maior brilho fica com a dupla principal. Jodie Foster é brilhante interpretando uma policial jovem que quer deixar claro que tais condições (de gênero e idade) não a tornam inferior. Pelo contrário, ela é profissional (ao expulsar os policiais da sala de exame de corpo de delito) e detalhista (é quem percebe algo na garganta da vítima), além de, é claro, extremamente brava (ela se aproxima mais de Hannibal do que o batalhão de oficiais responsáveis por cuidar dele). Na frente de todos, ela precisa parecer inabalável, deixando as vulnerabilidades quando inafastáveis (no clímax) ou quando sozinha (na saída da primeira visita ao doutor Lecter). Enquanto Clarice finge respeitar Hannibal, Anthony Hopkins (igualmente brilhante) faz com que o serial killer se divirta com a inexperiência da moça. Seus sorrisos são irônicos; sua vocalização tem tonalidade fina que engana os traços reais da sua personalidade. Se o canibal afirma ficar incomodado com a falta de educação e tem a gentileza de ceder uma toalha para Clarice depois de ela se molhar na chuva, isso não o torna menos inescrupuloso ao mencionar repetidas vezes que a “pobre Catherine está esperando” ou menos provocador ao falar sobre as fragrâncias e o sotaque da policial com quem conversa. O arrebatador som feito com a boca após mencionar uma refeição é simplesmente inesquecível.
Em comum, Hannibal e Clarice compartilham uma característica que “O silêncio dos inocentes” deixa claro que é compartilhada pela humanidade: as ações individuais são voltadas à utilidade própria, nada mais. É fácil imaginar que Hannibal age para melhorar sua condição atual ao conhecer Clarice, mas o que o filme dá a entender é que até mesmo ela tem segundas intenções. Logicamente, conversar com o doutor é uma oportunidade no próprio trabalho, mais ainda se isso puder ajudar em outros casos. O que aparece quando ele propõe o quid pro quo é também o que faz com que ele aceite as conversas é: no fim, ela não é policial por altruísmo ou memória afetiva (em relação ao pai); Clarice não aguenta mais os gritos dos cordeiros, e seu trabalho talvez seja a única maneira de obter o silêncio desejado.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.